Institucionalizada nos governos Joaquim Roriz, a distribuição de lotes a pessoas de baixa renda trouxe junto uma rede de negócios escusos, estelionatos, e enriquecimento ilícito para quem viu na distribuição de terras públicas uma chance de ganhar dinheiro fácil, além de produzir um monte de lideranças sem expressividade que não cansam de pressionar o governo e políticos, arrotando influência e exigindo benesses. O pior é que boa parte dos mal feitos nesse ramo foi e é de conhecimento público e do próprio governo e em muitos casos foi e é tolerada pelas autoridades interessadas nos ganhos políticos e até financeiros dos negócios com terra pública.
A criação de assentamentos na era Roriz enriqueceu muitos picaretas e forjou lideranças políticas que se mostraram inexpressivas quando tiveram a oportunidade de ocupar cargos no parlamento ou no governo, a não ser, claro, para determinados grupos que se beneficiaram ou beneficiam das picaretagens. O mais recente exemplo disso foi a criação das Áreas de Desenvolvimento Econômico, as ADEs, que enriqueceram o então secretário do governo que cuidava do galinheiro, ao promover uma farta venda de terrenos com cobrança de ágio particular a quem queria e precisava produzir, ao mesmo tempo em que beneficiou uma quantidade de amigos fiéis que o acompanhavam. Foi assim com o Polo de Moda do Guará, quando alguns amigos do rei foram contemplados com até cinco lotes através de empresas fictícias ou laranjas sem nunca ter batido um prego na vida, enquanto outros empresários que efetivamente produziam ficaram de fora.
Outro exemplo são as cooperativas habitacionais de baixa renda, que descobriram um filão para auferir lucros na distribuição de terrenos públicos, sob o pretexto de defenderem os interesses dos injustiçados inquilinos que nasceram ou moram no Distrito Federal há muitos anos. Sob a aba de uma lei aprovada pela Câmara Legislativa e sancionada pelo governo em 2006, as cooperativas conquistaram o direito a um naco de 40% sobre todos os assentamentos promovidos pelo Governo do Distrito Federal em terra pública, mesmo quando a área não é de interesse social, como é o caso da Expansão do Guará, onde estão as QEs 48 a 58, na região conhecida como “Cidade do Servidor”.
Como é muito valorizada por causa da localização privilegiada, a Expansão do Guará é o alvo da vez do movimento cooperativista, que conseguiu convencer o governo a destinar a ele quase a metade dos lotes das novas quadras, em condições financeiras infinitamente mais favoráveis do que a verificada nos leilões promovidos pela Terracap na venda da outra parte. Enquanto um lote vendido pela Terracap por R$ 300 mil a 400 mil, outro do mesmo tamanho e na mesma quadra é entregue às cooperativas por apenas R$ 78 mil, e ainda financiado com juros e condições inéditas no mercado financeiro. Tá aí o prato cheio para o lucro fácil, principalmente para algumas lideranças que controlam até cinco cooperativas e comercializaram e comercializam parte de sua cota, de até 25 lotes cada, sem cerimônia e com ágios de até 200%, sob o pretexto de que precisam cobrir despesas com documentação e outras providências. Claro que não são todas as cooperativas, porque no meio existem lideranças sérias que estão cumprindo com os objetivos da concessão e trabalhando com seriedade. Mas, são exceções, quando deveria ser a regra.
Mercado aberto
Desde quando foi anunciada a destinação de 805 dos 1800 lotes – a diferença é vendida pela Terracap – da Expansão para as cooperativas, começou a funcionar um mercado de venda irregular de ágios, tudo às claras. O resultado é que a tão alegada necessidade de atender os inquilinos que sonham com a casa própria sem deixar a cidade que nasceram e moram está sendo desvirtuada com a venda dos lotes a quem pague o que pedem e apenas atendam às exigências do programa habitacional do governo, de comprovar não possuir imóvel no DF, renda familiar de até 12 salários mínimos e comprovar moradia no DF nos últimos cinco anos. Exigências fáceis de serem cumpridas e que engessam o controle por parte da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), gerente do programa habitacional de interesse social, que conhece as denúncias, comprova algumas, mas esbarra na burocracia das providências e nos direitos de defesa previstos na Constituição.
Nesta semana, a própria Codhab emitiu uma nota alertando a população para que não caia no golpe de venda de lotes destinados às cooperativas habitacionais, principalmente no Guará. De acordo com a empresa, “não existem ofertas de lotes a serem distribuídos a qualquer associação ou cooperativa habitacional na região do Guará ou Vila Telebrasília, sejam a título de venda, alienação ou por editais. Portanto, qualquer tentativa de comercialização de lotes nas citadas regiões, por parte de cooperativas/associações alegando que representam a Codhab ou os interesses desta, o fato deverá ser denunciado imediatamente em uma delegacia de polícia mais próxima, bem como, reportar o fato pelo canal da ouvidoria – 162”.
A nota da Codhab tenta estancar uma nova onda de oferta fictícia de lotes no Guará e na Vila Telebrasília, onde falsas cooperativas e lideranças ou estelionatários garantem ter direito a uma nova remessa de lotes. No Guará, de acordo com essas ofertas, além de lotes remanescentes nas novas quadras, que voltariam a ser distribuídos às cooperativas, teriam outros previstos numa hipotética “expansão da QE 38”, um assentamento reivindicado para o terreno ao lado do campo de grama sintética, onde existe um campo de futebol de terra batida e uma plantação de eucaliptos.
Segundo o assessor especial da Cohab, Luciano Marinho, estelionatários estão usando o nome de cooperativas que sequer são cadastradas no órgão, para oferecer lotes na cidade. “Todas as cooperativas selecionadas para a Expansão do Guará já receberam suas cotas e não há mais possiblidade de novos acréscimos. E essa expansão da QE 38 não existe e nunca existiu projeto por parte do governo”, esclarece. O assessor conta que a polícia e a Codhab conseguiram identificar duas cooperativas suspeitas da tentativa de estelionato e que estão sendo tomadas providências para incriminá-las.
De acordo com denúncias à polícia e à Codhab, os estelionatários estão anunciando os lotes em sites de vendas, principalmente na OLX, e já conseguiram enganar vários interessados. “Temos relatos de vítimas que entregaram carro e repassaram dinheiro em troca desse pretenso direito a lotes no Guará”, conta Luciano Marinho.
Além dos lotes que não existem na “expansão da 38”, os estelionatários estão aplicando outro golpe na venda de terrenos nas quadras novas. Segundo o assessor, eles identificam os lotes ainda vazios, forjam documentos de repasse às cooperativas, e os revendem. As vítimas só descobrem o golpe quando procuram a Codhab para a regularização.
Ocupação irregular
Outra denúncia que a empresa está apurando é o desvirtuando na ocupação dos lotes distribuídos às cooperativas na Expansão do Guará. São vários casos de construções fora dos padrões técnicos para a região definidos pela Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos), como prédios para quitinetes e até para um hotel de passagem através do aplicativo Airbnb, que vende estadias mais baratas.
“A Codhab já identificou mais de 50 ocupações irregularidades somente no Guará, sendo que foram abertos 36 processos de retomadas dos lotes na região, que não podem ser imediatas porque temos que aguardar a tramitação do direito de defesa por parte dos denunciados”, explica Marinho. Ele conta que as irregularidades são comprovadas através de fiscalização periódica no local e imagens de georreferenciamento colhidas por satélites e drones. Concluído o prazo do direito de defesa e caso a Justiça não considere os argumentos apresentados pelos denunciados pelas irregularidades, os lotes retomados são repassados à Caixa Econômica Federal, que financiou a venda, para que sejam leiloados. “Já temos 1704 processos de retomada no Distrito Federal em áreas destinadas às cooperativas”, completa Marinho, que acrescenta que a Codhab apenas notifica e abre o processo de cancelamento da concessão, mas não tem o poder de polícia de evitar a continuação das obras irregulares, função que cabe aos órgãos fiscalizadores, principalmente à Secretaria DF Legal, antiga Agefis.
O que diz a lei dos assentamentos sociais
Aprovada e sancionada em 2006, a Lei 3877, destina 40% dos lotes dos assentamentos públicos no Distrito Federal às cooperativas e associações habitacionais. E 8% são reservados para pessoas com deficiência, 5% para idosos e 7% para pessoas em situação de vulnerabilidade social.
No caso da Expansão do Guará, foram selecionadas 73 cooperativas habitacionais que tiverem direito a até 25 lotes cada. Inicialmente, foram destinadas as elas 400 lotes na região, mas há dois anos o governo, atendendo à pressão do segmento, destinou outros 405 lotes, no total de 800 lotes dos cerca de 1.800 que compõe o novo assentamento.