O esvaziamento das administrações regionais, reduzidas a meros cartórios – para receber, carimbar e encaminhar documentos; em ouvidorias – para receber demandas e reclamações; e em moeda de troca de apoio de parlamentares, cada vez mais tem isolado a população das decisões tomadas pelo governo nas cidades do Distrito Federal. Até para uma simples operação tapa-buraco, as administrações têm que pedir benção a outros órgãos, como Novacap e o programa DF Presente, porque dispõem de uma mínima estrutura para realizar a manutenção das áreas pública da cidade, diferente do que já foi um dia.
O exemplo mais recente desse esvaziamento é a construção de uma ciclofaixa na via central do Guará II, que tem provocado indignação da maioria dos moradores, e, mesmo assim, a obra continua sem que haja a sensibilidade de algum representante do governo de ouvir as críticas dos moradores e tomar uma decisão para adequá-la, até para evitar mais prejuízos e transtornos no futuro. O projeto chegou ao absurdo de fechar o estacionamento de uma quadra comercial, numa época em que o comércio já sofre com as perdas provocadas pela pandemia. E a Administração Regional, que teoricamente deveria representar o governo na cidade, se limita a levar as reclamações de empresários e motoristas ao órgão responsável pela obra, no caso a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), sem que tenha força para conseguir reverter o que está sendo mal feito ou que esteja provocando tanta indignação. Deveria se impor como a “dona da cidade”, o que não tem acontecido inclusive em outras intervenções no Guará.
Também não está havendo sensibilidade do governo como um todo, inclusive do governador Ibaneis Rocha e das secretarias de Governo e de Mobilidade Urbana, de auscultar a voz do povo, manifestada nas redes sociais da cidade. As três reportagens do Jornal do Guará sobre a ciclofaixa provocaram centenas de críticas ao projeto pela forma como está sendo executado e nem assim alguém do governo teve a preocupação de considerá-las, mesmo que estejam expostas na internet.
Falta de comunicação
Parte da culpa deve ser creditada também às dificuldades, – ou da falta de interesse -, do governo em explicar o projeto para a população. Afinal, é uma intervenção importante, com impactos presentes e futuros na mobilidade urbana na via central. Quando a obra foi iniciada e começou a despertar a curiosidade dos moradores, a reportagem do Jornal do Guará questionou a Administração Regional sobre o assunto e recebeu a informação que o órgão não sabia do que se tratava e nem que outro órgão do governo tinha autorizado. Nenhuma placa na obra informava do que se tratava, como normalmente acontece em obra pública. Somente depois de recorrer à Secretaria de Comunicação do GDF é que a reportagem foi informada de que se tratava de uma compensação urbanística negociada com incorporadoras que haviam construído edifícios de até 25 andares na orla do Guará II, e que a responsabilidade de sua aprovação e contratação era da Seduh.
Na documentação encaminhada ao jornal para explicar a obra, a Secretaria de Habitação anexou a ata de uma audiência pública realizada no dia 27 de setembro de 2011, no auditório da Administração do Guará para deliberar sobre o assunto. Sem publicidade, – as principais lideranças da cidade, as que não perdem uma reunião que debata sobre o Guará, garantem que não ficaram sabendo -, apenas presidentes de cooperativas habitacionais apareceram para reivindicar a cessão de lotes nas quadras 48 a 58, que estavam sendo criadas. Apenas foram para aproveitar a presença de representantes do governo na cidade. Provavelmente nenhuma delas tenha se interessado pelo debate sobre criação de uma ciclofaixa e suas consequências no centro do Guará II, mas, acabaram assinando a ata que concedeu legalidade ao cumprimento de mais uma etapa de uma intervenção em área pública como reza a lei, mesmo que a maioria reconheça, inclusive no próprio governo, que as audiências públicas são para “inglês ver”, até porque suas decisões nem sempre são respeitadas. Antes disso, no dia 15 de setembro de 2011, o Conselho de Planejamento (Conplan), em sua 96ª reunião ordinária, homologou o Estudo de Impacto de Vizinhança e da Avenida Central do Guará II, aprovado pela pela Comissão Multisetorial instituída pelo 32.921/2011.
Quase dez anos depois, no dia 14 de junho de 2021, a Comissão Permanente de Análise de Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança deu “anuência à empresa Hesa 20, compromissária do Grupo 2 do TC 02/2020, para que execute a obra de implantação do Trecho 01 do Projeto SIV 076/2018”. Essa comissão era formada por diversos órgãos do GDF, que fiscalizam e planejam a infraestrutura urbana, como Secretaria de Obras, Detran, Novacap, Ibram, Secretaria de Mobilidade e o Conselho de Planejamento do Distrito Federal (Conplan). “A reformulação da Avenida Central, criando uma infraestrutura cicloviária que conecte a estação do metrô Guará ao eixo estruturados foi identificada no Projeto Mobilidade Ativa no Entorno das Estações do metrô, tendo sido referendada no Plano +Bike elaborado em 2018 pela Secretaria de Mobilidade, com o intuito de complementar a rede cicloviária”, diz o Memorial Descritivo do projeto aprovado.
Por mais que a preocupação do projeto seja oferecer mais um modal para melhorar a mobilidade urbana através da bicicleta, com a consequente redução da emissão de gás carbônico e outros gases tóxicos gerados pelos combustíveis fósseis, não se justifica que a intervenção seja tão drástica exatamente quando o próprio governo licita o restante das projeções no centro do Guará II, o que vai provocar cada vez mais o aumento da demanda de veículos na via central. A realidade de hoje é bem diferente da que era há dez anos, quando o projeto foi elaborado e aprovado, e será bem diferente quando a população estiver aumentada em cerca de 30 mil novos habitantes na faixa central do Guará II, que estão previstas quando todas as projeções que estão sendo vendidas estiverem ocupadas. Será um caos que poderia ter sido evitado agora, se houvesse sensibilidade dos gestores públicos que autorizaram a obra e insistem em não ouvir as críticas e advertências da população.
Só críticas
Mesmo que essa enxurrada de críticas não esteja sendo considerada pelo governo, a obra alcançou o cúmulo da insensatez de fechar o estacionamento de uma quadra comercial na QE 13, em frente à estação do metrô, impedindo o acesso de caminhões de descarga de material para as lojas. Mobilizados contra essa insensatez, os lojistas de material de construção, panificadora, farmácia, cosméticos e produtos agropecuários foram pedir explicações e socorro à Administração Regional do Guará, que teoricamente seria o órgão que representaria o governo na cidade. Lá, obtiveram a promessa da administradora regional Luciane Quintana de que as demandas deles seriam encaminhadas à Secretaria de Habitação, como de fato aconteceu, mas ainda sem resultados práticos.
De acordo com o projeto que está sendo executado pela empreiteira contratada pelas empresas que assinaram o acordo de compensação urbanística com o governo, o novo acesso seria construído um pouco mais à frente, o que inviabilizaria a manobra de caminhões de grande porte, mas mesmo assim amenizaria o impacto sobre o comércio.
“Ficou acordado conosco que a solução será discutida entre os representantes da Secretaria, da Administração Regional e dos empresários no próprio local o quanto antes. Nada será feito sem que todos sejam ouvidos”, garantiu a administradora regional uma semana antes do fechamento do estacionamento. “Se o acesso não for restabelecido, todo o nosso comércio vai morrer aos poucos. Eu serei um a fechar minha loja”, garante Adelmo Coutinho, proprietário da loja de produtos agropecuários A Fazendeirinha, que funciona na quadra há mais de 40 anos.
Encaminhamos à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh) uma solicitação de entrevista com alguém que pudesse responder pelo projeto e recebemos a seguinte resposta:
“A Seduh informa que não executa as obras da ciclofaixa. O conjunto de melhorias que estão sendo executadas na região, faz parte do Termo de Compromisso resultado do Estudo de Impacto de Vizinhança. (EIV – Guara II).
No Termo, as construtoras se comprometem a realizar obras como medidas mitigadoras para diminuir o impacto das construções na região.
A Seduh elaborou o projeto que passou por aprovação da Semob, das concessionárias e todos os estudos de impacto foram realizados. A proposta foi aprovada em Audiência Pública e pelo Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan)
Mas, mesmo com a garantia da Seduh, o estacionamento foi fechado e o novo acesso não havia sido aberto até o fechamento da reportagem.