Um brinde à diversidade – Bar celebra cultura drag e transformista

Além de drinks autorais, Vale Lounge Bar organiza karaokês, festas à fantasia, lançamentos de eventos da comunidade e até exibição de episódios do reality show RuPaul’s Drag Race

por Vinícius Neves

No mês de junho é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, mas, aqui no Guará há espaços onde isso é celebrado o ano todo, o tempo inteiro. Um desses exemplos é o Vale Lounge Bar, que fica no Polo de Moda do Guará II. A sigla da comunidade, que já foi conhecida apenas como GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), passou por evoluções ao longo do tempo aepassou a abranger também pessoas bissexuais, transsexuais, transgêneros e travestis, queers (ou questionantes), intersexo, agênero, assexuais ou arromânticos. Alguns dos termos podem não ser familiares para muitos, mas a proposta do Vale Lounge Bar e de toda a equipe e frequentadores é promover o acesso e divulgação sobre a comunidade de uma forma acolhedora para todos aqueles que ainda encontram dificuldades em encontrar aceitação por serem, simplesmente, quem elas realmente são. E a maior ferramenta para se criar uma sociedade mais respeitosa e justa segue sendo a informação, a escuta, a cultura e a educação.


Inicialmente idealizada para ser inaugurada em Taguatinga, o Guará saiu ganhando quando um problema burocrático inviabilizou o espaço na antiga região e os planos foram readaptados aqui para o Guará, sempre seguindo o plano dos sócios: um ponto de encontro para a comunidade drag e LGBTQIA+ fora do eixo do Plano Piloto. Ainda este ano, o Vale recebeu o Prêmio Jorge Lafond de Arte e Cultura, que homenageia personalidades e aliados da comunidade no Distrito Federal, em cerimônia na Câmara Legislativa.

Nos Estados Unidos, Vanilla Jezz estudava o curso de gastrólogo e a Vale surgiu como a concretização do trabalho de conclusão de curso apresentado ao final da graduação. “Fui em uma boate que era voltada para drags e a primeira coisa que eu vi foi uma drag com uma prótese de silicone simulando seios, preparando um coquetel enquanto batia os peitos e eu fiquei ‘Meu Deus, eu quero isso para a minha vida!”‘, relembrou aos risos.
Administrando a diversidade

Vanilla Jezz é uma das donas proprietárias do Vale e diz que a ideia do bar surgiu após um momento de descoberta que aconteceu quando ela frequentou, pela primeira vez, um local abertamente LGBT em uma viagem que fez para Nova York. Nascida no Guará e de uma família tradicional, ela ressalta a importância do espaço ser um manifesto artístico, político e existencial e, por meio de arte, ocupar espaços onde as pessoas já existem, moram e trabalham, mas que não encontram opção de lazer e diversão: “Ver um local onde tantos amigos, tantos colegas, que também são LGBTs, e não tem um espaço de representatividade no meio dessa onda de conservadorismo – que vem com uma pauta de inexistência –, mostra que esses espaços são necessários para nossa vivência e é algo de suma importância para todas as pessoas. Então, quando a gente veio trazendo a Vale Lounge Bar para o Guará, a primeira coisa que a gente pensou, também, foi a descentralização, tirar do Plano porque muitas pessoas não têm o poderio de locomoção, de chegar a outros locais, e quisemos trazer algo para as [cidades] satélites. Quando o Guará se abriu como porta foi, para mim, o complemento de uma história que começou aqui e que aqui está sendo concretizada”, afirma.

Apesar de ter uma longa história dublando e interpretando Gal Costa nos palcos de teatros no Distrito Federal, Gal Maria se assumiu mulher trans há um ano, foi quando ela decidiu começar a cantar os sucessos e até músicas do “lado B” da artista baiana que é sua maior inspiração. Gal Maria já chegou, inclusive, a ser presidente de um fã clube da Gal Costa. O primeiro show ocorreu no aniversário da Gal Costa e, com a morte de ícone da MPB e Tropicália, em novembro de 2022, Gal Maria homenageou a cantora com um tributo, uma das suas primeiras apresentações cantando após a transição de gênero, período em que encerrou a carreira de cover – onde cantava, junto com uma banda, um pouco de tudo da MPB – e iniciou uma nova fase com foco apenas em Gal Costa, que ela diz ser “a maior voz do Brasil”. Em um encontro com a cantora, Gal Costa teria dito que a ela que “se você passar um batom, você fica a minha cara”. Foi quando surgiu a Gal Maria, que agora prepara o show “O amor TRANSformaAdor” e se diverte frequentando, assiduamente, o Vale.

Ela lamenta as raras situações em que as atendentes sofreram ofensas de cunho homofóbico e transfóbico. Apesar disso, ela celebra vitórias maiores: “Por mais que a casa seja uma casa LGBT, a gente tem tido muitos frequentadores heterossexuais e pessoas acima dos 50 anos e isso tem transformado seus pensamentos sobre o que é a arte drag queen e a arte transformista – a arte toca e transforma vidas de uma forma absurda”. E acrescenta: “Algumas das nossas funcionárias trans saíram da rua e hoje são garçonetes aqui e conseguem ter uma vida digna que não precise estar nas ruas que é, infelizmente, o local onde lhes é empurrado socialmente, não porque elas queiram ou escolheram, mas é a vida que a sociedade empurra a elas, o resto que sobra”. Ela conta que muitas candidatas são rejeitadas nas entrevistas apenas por terem feições masculinas. “Trazer de volta o local de trabalho e a dignidade é algo que também faz parte do nosso corpo enquanto existente, porque a gente coloca essas pessoas num foco de humanização, de mostrar que essas pessoas, assim como qualquer outra, também tem seus medos, fragilidades e as suas vulnerabilidades – que essa vulnerabilidade é muito maior do que aquela em uma pessoa branca, cis [aquela que se identifica com o sexo biológico que nasceu], hétero que está dentro de casa, protegida pelos pais e que não enfrentam o que as pessoas transsexuais enfrentam tantas vezes”. Ela celebra o caráter transformador do espaço: “Essa é a maior importância do Vale hoje, conseguir transformar uma rota, um mercado, em algo inclusivo e transformador para vidas trans, vidas gays e vidas negras de uma forma que a sociedade ainda não tinha se atendido”.

Davina Ysadora estava sobrevivendo de freelas até ser contratada no Vale.

Uma das funcionárias trans do Vale é a garçonete Davina Ysadora, que relembra o momento em que foi contratada para trabalhar no lounge bar: “Foi ótimo, me chamaram para começar fazendo freelance aqui e quando a Vanilla falou comigo e me explicou que abriram uma nova vaga e estavam precisando, eu fiquei muito feliz com a notícia da contratação, muito feliz! Eu estava precisando do emprego, lógico, mas aqui também é o emprego que eu sempre quis, é um lugar onde eu sou aceita, onde posso me vestir como eu gosto e onde eu estou cercada de pessoas como eu, que me entendem e eu entendo elas. Para mim, aqui é como uma grande família”.
Moradora do Guará, Gal Maria é cantora, artista plástica, frequenta o Vale desde a abertura e estava ansiosa para o lançamento da casa, que aconteceu ainda neste ano de 2023: “É uma conquista muito grande ter um espaço voltado não só para o público LGBT, mas que emprega, exclusivamente, funcionárias transgêneros, drag queens e transformistas, pois há pouco espaço no mercado de trabalho [para essa parcela da população]. É uma conquista gigante.”
No final de maio, o Vale recebeu o lançamento da revista DRAGAzine, uma publicação com foco principal no registro histórico e memória da arte transformista na capital federal. Na ocasião, o deputado distrital Fábio Félix (PSOL) esteve presente e reforçou a importância de espaços como o Vale pelo DF: “A gente precisa ter mais nas cidades, e não só no Plano Piloto, espaços que sejam inclusivos à diversidade para a população LGBTQIA+. Óbvio que esse espaço não é só para população LGBTQIA+, mas são espaços onde essa população se sente respeitada, cuidada, que não vai sofrer violência e que todo mundo é bem vindo e acolhido. Fico feliz de que mais um espaço como esse exista também no Guará”.