Teoricamente, os 805 lotes dos cerca de 2 mil lotes das quadras novas do Guará (QEs 48 a 58) deveriam ser destinadas ao programa de habitação de interesse social do Distrito Federal, de acordo com a Lei 3877/2006. Ou seja, esses terrenos, repassados às cooperativas habitacionais a preços subsidiados, por cerca da metade do valor dos que estão vendidos pela Terracap no mesmo setor, deveriam ser destinados somente a inquilinos que residam no Distrito Federal há algum tempo e ainda não tiveram oportunidade, ou condições financeiras, para adquirir um imóvel. Mas não é isso exatamente o que está acontecendo. Além de várias denúncias de comercialização de terrenos a quem não se enquadra nos critérios sociais, escancara o surgimento de prédios destinados a quitinetes, uma praga disseminada principalmente no Polo de Moda e que espalha por todo o Guará.
O comércio irregular de terrenos subsidiados chega a ser anunciado em placas e faixas, sem medo da fiscalização dos órgãos competentes, que tem se mostrado inócua diante do aumento das irregularidades nas quadras novas. Mas, enquanto o mercado irregular de terrenos é menos aparente, a construção de prédios de quitinetes é ostensiva e somente não vê – ou não combate – quem não quiser.
Diante da morosidade do governo no combate às irregularidades, os próprios moradores resolveram se organizar para denunciar e pressionar a Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab), responsável pela gestão do programa habitacional de interesse social do governo, o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA-DF), a quem cabe fiscalizar o cumprimento das regras de construção, e a Secretaria DF Legal, que cuida do combate às ocupações e construções irregulares no Distrito Federal. Organizados em três grupos de WhatsApp, eles estimulam e trocam fotos e endereços de construções que supostamente são ou serão destinados a quitinetes, em terrenos onde deveriam haver somente ocupações unifamiliares, de acordo com a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) e as regras dos programas habitacionais do governo. Algumas das denúncias são apenas suspeitas, porque as obras ainda não foram concluídas, mas outras são indisfarçáveis, como prédios com dois ou três andares de sacadas, janelas e portas iguais, vários medidores de energias e entradas laterais, e a quantidade de veículos em frente à construção.
A preocupação dos moradores é com a manutenção da qualidade de vida do local onde escolheram para construir seus imóveis e sair do aluguel. E uma dessas preocupações, além do desconhecimento de quem são seus vizinhos, que podem ser apenas sazonais, é com o congestionamento de veículos nas ruas apertadas, atrapalhando o acesso às suas próprias garagens.
Denúncias às ouvidorias
As denúncias estão sendo encaminhadas às Ouvidorias da Codhab, do Crea-DF, da DF Legal e da Administração Regional do Guará, para que possam se transformar em documentos e exijam respostas desses órgãos. Mesmo não sendo responsável pela fiscalização, a Administração Regional do Guará tem acompanhado a preocupação dos moradores e pressionado os órgãos de fiscalização a tomarem providências. “Isso não pode continuar acontecendo sem que sejam tomadas providências. Todos esses terrenos das quadras novas deveriam estar ocupados somente por quem precisa e não por especuladores”, afirma o administrador regional do Guará, Artur Nogueira, que tem feito rondas pessoais nas novas quadras para acompanhar e ajudar a denunciar as irregularidades, como fez ao perceber a construção de um galpão em terreno da Terracap na QE 56 para forçar um suposto direito de prioridade na futura licitação do terreno (ver quadro).
“Se tem no edital que cada lote pode ter apenas uma moradia, é lei, e acabou. Temos que fazer valer nossos direitos, porque esses prédios de quitinetes desvalorizam nossos próprios imóveis”, afirma o morador Gustavo Almeida. “O problema é que apenas alguns tem a coragem de encaminhar as denúncias aos órgãos competentes. Precisamos nos mobilizar para combater, com maior veemências, as irregularidades nas quadras novas, para que elas não se disseminem mais ainda”, completa Carolina Almeida, outra moradora.
Considerada uma das principais lideranças responsáveis pela negociação para o repasse de 805 lotes às associações habitacionais – 40% do total, o restante é comercializado pela Terracap -, Teresa Ferreira Dias responsabiliza principalmente o Crea-DF pelo aumento das construções irregulares. “O papel de fiscalização das obras cabe ao CREA, mas quem estiver construindo sem antes ter ido buscar a autorização junto à Central de Aprovação de Projetos (CAP), do GDF, com certeza terá problemas sérios e um deles é o não recebimento do Habite-se. O problema é que esses especuladores não pedem aprovação dos projetos porque não se enquadram nas exigências legais”, explica Teresa, presidente da Associação das Ocupações Históricas do Guará (Amoriguar), uma das 123 cooperativas e associações que receberam e distribuíram terrenos nas quadras novas.
Órgãos se explicam
Questionada pela reportagem do Jornal do Guará, a Codhab respondeu que “vem realizando fiscalizações periódicas no local, sempre que há denúncias de supostas irregularidades, bem como tomando todas as providências cabíveis em caso de comprovado desvio de finalidade”. Em relação às denúncias de repasse de terrenos a quem não preenche os requisitos do programa, a resposta é que, “ao final dos processos de fiscalização, desde comprovado a irregularidade/desvio de finalidade, a Codhab sugere o distratadde contrato com a cooperativa/associação, a reintegração de posse do bem, e o envio dos autos à DF-Legal, em caso de construções irregulares. Para assim, promover com a devida derrubada”.
A Codhab respondeu também que “o imóvel objeto das Políticas Públicas de Habitação de Interesse Social, nos termos da Lei n° 3.877 de 2006, não pode ser vendido, cedido ou alugado, até a que seja transferido o domínio do imóvel do poder público para o beneficiário dos programas habitacionais”, e que “tem promovido fiscalização de forma constante e periódica em todos os assentamentos populacionais do governo”.
Também questionado pela reportagem através de e-mail e por telefone, o Crea-DF respondeu que toda a diretoria e os assessores que poderiam responder à demanda estavam participando de um congresso em Gramado, cidade turística do Rio Grande do Sul.
O que diz a lei dos assentamentos sociais
Aprovada e sancionada em 2006, a Lei 3877, destina 40% dos lotes dos assentamentos públicos no Distrito Federal às cooperativas e associações habitacionais. E 8% são reservados para pessoas com deficiência, 5% para idosos e 7% para pessoas em situação de vulnerabilidade social.
No caso das quadras novas do Guará (QEs 48 a 58), foram selecionadas 123 cooperativas habitacionais que tiverem direito a até 25 lotes cada. Inicialmente, foram destinadas as elas 400 lotes na região, mas há dois anos o governo, atendendo à pressão do segmento, destinou outros 405 lotes, no total de 805 lotes dos cerca de 2 mil lotes que compõem o novo assentamento.