Para quem não conhece, é difícil acreditar que essas fotos da página são de uma região localizada numa das cidades de melhor poder socioeconômico do Distrito Federal. Pior, é que são. A QE 40/Polo de Moda – que é uma quadra só – é o retrato da falta conscientização de seus ocupantes e o resultado do desvirtuamento de um espaço que foi idealizado para se tornar num polo de desenvolvimento e que acabou se transformando num assentamento populacional da pior qualidade. As mais de quatro mil quitinetes erguidas irregularmente, com a conivência dos órgãos públicos, tem atraído cada vez mais garotas de programa – basta uma consulta aos sites de prostituição para constatar – e traficantes de droga, de acordo com a própria Secretaria de Segurança Pública, que coloca a quadra no topo do mapa da criminalidade e do tráfico de drogas do Distrito Federal, acima até de Ceilândia e da Estrutural. O retrato dessa mistura está na quantidade de ocorrências policiais e, principalmente, da sujeira espalhada pelas ruas a qualquer hora do dia. Resíduos de todos os tipos se acumulam nos canteiros, calçadas e até mesmo nas ruas, criando um cenário de descaso que combina falta de educação ambiental com omissão coletiva.
Andar pelo Polo de Moda, principalmente à tarde, provoca nojo em que se importa com a qualidade do meio ambiente, tanta é a quantidade de lixo espalhada pelas ruas, sem qualquer cuidado no envasamento e fora dos horários de coleta. E não adianta campanhas de conscientização e ações de fiscalização, porque a situação não melhora. Em janeiro de 2024, a Administração Regional do Guará, o Serviço de Limpeza Urbana (SLU) e a Secretaria DF Legal se mobilizaram para conscientizar moradores e empresários da necessidade de evitar o acúmulo de lixo em locais e horários impróprios, mas, pelo jeito, foi esforço perdido. Um mês depois, como constatou a reportagem do Jornal do Guará na época, tudo estava como antes da operação e, agora em dezembro, quase um ano depois, a situação está ainda pior. É cada vez maior a quantidade de lixo espalhada pelas áreas públicas, para indiferença de quem vive ou trabalha na quadra – e quem se preocupa prefere transferir a responsabilidade, ou a culpa, para a Administração Regional ou para o SLU.
Além do lixo descartado de forma inadequada, containers de construção acabam sendo usados para descarte de lixo orgânico, atrapalhando as obras e dificultando a coleta. A limpeza das ruas é de responsabilidade do SLU, mas a falta de consciência dos moradores impede que elas sejam mantidas limpas. Embora o problema seja frequentemente atribuído à ausência de ações governamentais, moradores e comerciantes acreditam que a raiz está na falta de cultura e respeito pela coletividade.
E a situação tende a piorar mais ainda por causa da quantidade de novos edifícios de quitinetes que estão surgindo, na esteira da omissão do governo, alguns com até quatro pavimentos acima dos quatro permitidos, o que vai provocar a chegada de mais gente, mais carros, sem que haja perspectivas de reversão das qualidades sanitárias atuais.
Para o Chefe do Núcleo do Guará de Limpeza Urbana do SLU, Emivaldo Batista Neto, a situação está ficando cada vez mais difícil para o serviço de coleta de lixo e entulho na quadra. “Além da falta de conscientização dos moradores, os caminhões de coleta tem dificuldades de circular em determinadas ruas por causa da quantidade de carros estacionados dos dois lados. Muitas vezes, os motoristas dos caminhões tem que ficar buzinando para que os moradores possam retirar os carros para o serviço continuar”, diz ele. Emivaldo conta que está com dificuldades para concluir uma operação de capina e mato na quadra porque os canteiros centrais foram transformados em estacionamentos de veículos. “Temos uma carretinha para recolhimento de restos de móveis e eletrodomésticos, que passa duas vezes pela quadra por semana, e mesmo assim não estamos conseguindo vencer a demanda. Para se ter uma ideia, a região da QE/40 e 38 dá mais trabalho para o serviço de limpeza urbana do que todo o restante do Guará”, compara.
Para Maria da Conceição, comerciante há 12 anos no Polo de Moda, a situação do lixo na quadra está piorando. “Eu trabalho aqui há mais de uma década e nunca vi nada parecido. As pessoas jogam sacolas, latinhas, restos de comida e até móveis velhos no meio da rua. O governo pode não ser perfeito, mas a falta de respeito vem de quem passa por aqui todos os dias. Isso espanta os clientes e prejudica todos nós”, diz ela. O catador de recicláveis José Carlos Pereira, reforça a crítica: “Pra mim, o problema maior não é a falta de coleta, porque ela até acontece. Mas o povo não separa nada. Eles jogam plástico, vidro e lixo orgânico tudo junto. Isso dificulta meu trabalho e faz com que os materiais recicláveis acabem nos bueiros ou nos terrenos baldios. A educação ambiental tem que começar em casa”, recomenda.
Professora de Biologia, Luciana Mendes culpa a falta de cultura da população para a manutenção saudável do meio ambiente. “Há uma banalização do impacto do lixo, como se jogar uma garrafa ou um papel no chão não tivesse consequências. Isso gera enchentes, proliferação de doenças e degradação do espaço público. A solução é investir em campanhas educativas, mas também punir quem insiste nesse comportamento”, afirma. Para quem sofre na pele esse descaso, Raimundo Oliveira, funcionário da empresa que coleta o lixo na quadra, é desanimador o que acontece na QE 40. “A gente passa com os caminhões, faz a limpeza, mas em questão de horas o lixo volta. É frustrante. Parece que ninguém se importa com o trabalho que a gente faz. É comum encontrar móveis um meio da rua, e isso não tem a ver com falta de coleta, mas com irresponsabilidade mesmo”.
Locação barata atrai submundo
A explicação para o aumento da violência e na sujeira na QE 40/Polo de Moda é a transformação ao longo do tempo em “polo de quitinete”. Os lotes, que deveriam ter sido ocupados por algum tipo de atividade econômica e no máximo pela família dos seus proprietários em mais dois pavimentos, foram transformados na maioria em edifícios residenciais com até sete pavimentos – já existem com até oito pavimentos em construção – , abrigando em alguns deles mais de 20 quitinetes.
Como são irregulares e pequenas, esses pequenos apartamentos atraem o inquilino de menor poder aquisitivo por serem mais baratos e, pior, sem necessidade de comprovação de antecedentes criminais ou de cadastro. “É pra lá que vão as pessoas que não conseguem alugar em outro lugar por causa das exigências de documentos ou de ficha limpa, ou que pretendem ficar por pouco tempo em um lugar enquanto praticam crimes”, explica o delegado chefe da 4ª Delegacia de Polícia do Guará, Lorisvaldo Chacha. Essas facilidades tem atraído também cada vez mais garotas de programa, de acordo com a quantidade de anúncios publicados na Internet, tornando o Polo de Moda num dos dois endereços principais da prostituição no Distrito Federal – o outro é a região compreendida entre as 712/13 e 312/13 da Asa Norte. “Mas nem todas moram no Polo de Moda. Uma parte apenas aluga quitinetes na quadra para realizar programas sexuais e retorna para suas casas no Entorno ou em outras regiões do DF”, completa o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar do Guará, coronel Carlos Henrique Costa.
Contribui para esse desvirtuamento a omissão dos órgãos de fiscalização, que permitiram e permitem a construção de moradias irregularidades numa região que não estava preparada para receber tanta gente. À polícia cabe apenas agir sobre a violência consumada e, mesmo assim, é considerada culpada ou omissa por parte dos moradores sempre que acontecem furto, roubo, briga ou homicídio na quadra. E ao SLU tentar manter a quadra limpa, mesmo com a falta de colaboração dos moradores e a dificuldade de execução dos serviços.