Em várias regiões do mundo, ruínas são pontos turísticos e admiradas por sua beleza ou pela coragem, persistência e até tecnologia de povos antigos que construíram templos, cidades e monumentos grandiosos. Não é, entretanto, o caso do Guará, que também tem suas ruínas, mas que não passam de símbolos de incompetência, intolerância de atores e falta de vontade política por parte do governo. Em vez de provocar admiração, no caso das ruínas históricas, as do Cave provocam indignação e pena, pelo fato de um espaço tão nobre e bem localizado ter sido parcialmente destruído e abandonado. O estádio foi parcialmente demolido há mais de dez anos, o ginásio coberto está interditado há seis anos e quadras poliesportivas estão impraticáveis. Tudo à espera de uma concessão, a apelidada de “PPP do Cave”, anunciada há seis anos e lançada há dois anos, mas que não consegue sair do lugar por causa de interesses corporativistas de segmentos da comunidade, lentidão e excesso de burocracia de um tribunal de contas e falta de vontade política e de competência do governo (desde o anterior). Mistura-se tudo e temos o retrato do abandono de um espaço que poderia estar sediando jogos de futebol, shows, e sendo utilizado por praticantes de esportes. Esse é o retrato do Cave, mostrado nas fotos que ornam essa reportagem.
Todo esse descaso começou no Governo Agnelo Queiroz, que na onda megalomaníaca de construir um estádio acima das necessidades de Brasília, inventou de criar um apêndice no Guará, para eventos para menos de 10 mil pessoas que ficariam boiando no imenso estádio Mané Garrincha, que tem capacidade para 70 mil pessoas. Para essa “ideia de jerico”, o estádio do Cave, o mais próximo do Mané, seria reformado e transformado numa arena multiuso, para abrigar, além de eventos culturais e de lazer, o futebol profissional. E o governo local até conseguiu um generoso recurso de R$ 8 milhões, que, somado a R$ 3 milhões da contrapartida do GDF, seria suficiente para refazer o velho e ultrapassado estádio do Cave. Mas, como quase tudo no governo – em todos do Brasil – as ideias não são acompanhadas de estudos e projetos técnicos prévios, esqueceram que o órgão que seria responsável pela obra, a Novacap, não possuía corpo técnico com capacidade e quantidade para elaborar o projeto a tempo dos recursos serem aproveitados antes do fim do orçamento do então Governo Dilma Rousseff.
A reforma do estádio até foi licitada e começou a ser feita, até a empreiteira que ganhou a licitação descobrir que haviam erros de cálculos dos custos e de estudos geológicos do terreno. Como não conseguiu convencer a Novacap a aumentar o orçamento ou oferecer um termo aditivo que tornasse a obra economicamente viável, a empreiteira desistiu de continuar e abandonou a reforma.
PPP
Já no Governo Rollembeg, que veio depois, surgiu a ideia de conceder todo o espaço do Cave à iniciativa privada, que ficaria responsável pela reformulação e modernização, em troca da exploração do que viesse a construir. A decisão, louvável, veio com a constatação de que não havia recursos suficientes para a reforma do complexo, ou que haviam outras prioridades de investimentos, e, principalmente, que não havia expertise e estrutura suficiente na Administração Regional do Guará para administrar o espaço depois de reformado.
Tudo caminhava bonitinho, com o projeto contratado através de chamamento público e o edital para a escolha do concessionário lançado em janeiro de 2019. Mas esqueceram de combinar com os russos, como diria o lendário Mané Garrincha. No caso, o segmento cultural do Guará, que, por motivos de corpo e até de tendência ideológica, protestou contra a “entrega de um patrimônio público à iniciativa privada”, e a perda do subutilizado Teatro de Arena, que até então não recebia sequer cinco eventos por ano. E, após pressão popular ao Tribunal de Contas do Distrito Federal, responsável por analisar denúncias que envolvam obras e concessões públicas, o movimento conseguiu convencer os conselheiros a suspender o projeto. E aí começaram as intransigências dos dois lados – enquanto o governo insistia em manter a concessão como tinha planejado, o movimento cultural não abria mão das suas convicções, até que, chegaram a um acordo, que incluía a retirada do Teatro de Arena do projeto. Imaginava-se que a partir daí, o andamento das providências da concessão seriam rápidas, o que, entretanto, não aconteceu. Quatro meses após a devolução do projeto pelo TCDF à Secretaria de Projetos Especiais, responsável pelos ajustes propostos antes do encaminhamento à Secretaria de Esporte e Lazer para elaboração e publicação do edital, não se sabe o que aconteceu.
A reportagem do Jornal do Guará encaminhou questionamento à Secretaria de Projetos Especiais solicitando informações sobre o andamento e as previsões e até esta quinta-feira não havia recebido resposta. A lentidão pode soar como um esfriamento proposital, não se sabe o motivo, para ir empurrando o projeto até uma decisão política mais tarde. Mas, de acordo com dois técnicos do governo envolvidos no projeto ouvidos pela reportagem, o interesse pela concessão continua, porém, não se sabe para, e até, quando.
Porque parou
A inclusão do Teatro de Arena no projeto da concessão provocou o cancelamento do edital de licitação, em janeiro de 2022, depois que o TCDF atendeu a uma reivindicação do Conselho de Cultura do Guará e suspendeu o certame até que a divergência fosse resolvida. De acordo com o Conselho, o teatro não poderia ser privatizado porque é um equipamento cultural público e, de acordo com o Artigo 250 da Lei Orgânica do Distrito Federal e a Lei Orgânica da Cultura do DF, somente pode ser extinto ou privatizado se for providenciado outro no mínimo do mesmo tamanho e para atender a mesma comunidade.
Por recomendação do relator, conselheiro Manoel Andrade, e intermediação da deputada distrital Dayse Amarílio e a anuência do governo, o teatro foi finalmente retirado do projeto em outubro em outubro passado.
A alteração já havia sido prometida pelo secretário de Governo, José Humberto Pires, em entrevista exclusiva ao Jornal do Guará em novembro de 2022, mas houve resistência do secretário de Projetos Especiais, Roberto Morais, e o projeto continuou sendo tocado como estava antes. Mas, a chegada da nova deputada distrital Dayse Amarílio (PSB), que apadrinhou o pleito do movimento cultural e passou a pressionar o governo pela retirada, mudou o cenário. Como em pouco tempo ela conseguiu um bom trânsito no governo e passou a ser respeitada como a principal representante do Guará, conseguiu convencer os dois secretários que seria a melhor solução para não atrasar mais a concessão do Cave. Na empreitada, ela teve o apoio do administrador regional Artur Nogueira.
A resistência da Secretaria de Projetos Especiais era sob o argumento de que a retirada do Teatro de Arena do Projeto iria inviabilizar economicamente o projeto e afastar possíveis interessados na concessão. Mas a deputada, que promoveu vários encontros e consultou entendidos no assunto, convenceu os representantes do governo que a alteração não acarretaria perda de receita por parte ao concessionário a ponto de inviabilizar a concessão.
Reparcelamento do Cave ajudou na retirada do teatro
Uma audiência pública promovida pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), no dia 7 de maio do ano passado, para regularizar os lotes ocupados no Cave por órgãos públicos e instituições, ajudou na retirada do teatro do projeto. Durante a audiência, a Seduh atendeu a uma sugestão do movimento cultural, que reclamava da inclusão da Casa da Cultura e do próprio Teatro de Arena em um único lote, o que, de acordo com a opinião do movimento, facilitaria a inclusão dos dois equipamentos na concessão. Atendendo à solicitação dos representantes culturais do Guará, a área foi subdividida em quatro lotes: um deles incluiu o Ginásio Coberto, outro a Casa da Cultura, outro o Circuito de Bicicross e outro engloba a área das quadras de esportes.
Só a PPP salva o estádio do Cave
A cidade deveria ter o segundo mais moderno estádio de futebol do Distrito Federal depois do Mané Garrincha. A primeira promessa é de 2013, quando o então secretário extraordinário da Copa no DF, Cláudio Monteiro, anunciou que seria construído um novo estádio no lugar do velho e ultrapassado Cave, para servir de treinamento às seleções que viriam jogar em Brasília pela Copa do Mundo de 2014 e depois servir de apêndice do estádio Mané Garrincha para eventos para até 10 mil pessoas. A obra custaria cerca de R$ 10 milhões, retirados do orçamento da construção do estádio Mané Garrincha.
Mas, nada DISSO aconteceu. A segunda promessa, que se tornou em ação, veio no início do Governo Rollemberg, quando foi firmado um convênio com o Ministério do Esporte para a reforma do estádio, desta vez para servir de suporte às Olimpíadas do Rio de Janeiro, também como centro de treinamento para as seleções que viriam jogar em Brasília. Pelo convênio, o Ministério, através da Caixa Econômica Federal, repassaria cerca de R$ 8 milhões ao GDF, que arcaria com apenas 20% da obra, orçada em pouco mais de R$ 9 milhões.
Nove anos depois da primeira promessa, a cidade continua sem o novo estádio e, pior, sem o velho, que foi parcialmente demolido e continua com as obras paralisadas. O que foi feito e gasto está sendo perdido com a ação do tempo. O gramado, que chegou a ser implantado, era do nível do Mané Garrincha, com a mesma espécie de grama Bermudas Teflon e custou cerca de R$ 400 mil, mas, tomado por pragas e mato, praticamente não tem condições de ser reaproveitado, porque resta pouco da grama plantada e hoje serve de palco para treinamento de um time de futebol americano. Está pronta também a estrutura dos vestiários e parte administrativa, que também corre o risco de ficar comprometida se não for aproveitada logo. A tribuna de imprensa foi destruída para ser uma nova, mas nada foi feito no local. Os banheiros também. O cenário é de completo abandono.
A única esperança da cidade ter de volta seu estádio é a privatização do Cave, que continua andando a passos de tartaruga. A conclusão da reforma é uma das condições incluídas no edital que vai escolher o concessionário do complexo. Continua a esperança.