Mutirão misturava dificuldade e alegria

Nem a lama ou a poeira tiravam o ânimo de quem construía sua própria casa. Mas ciumeira política pôs fim à ideia

De acordo com as lembranças dos participantes do mutirão que deu origem ao Guará, ao redor do primeiro grupo de casas só havia mato, barro e poeira vermelha. De vez em quando, tinha a companhia de cobras e outros animais que habitavam a mata que margeava o córrego Guará, que iam observar o trabalho daqueles pioneiros.

O presidente da Novacap, Rogério Freitas Cunha, acompanhava o mutirão de perto e sorteava as casas em papeis depositados no inseparável chapéu de palha

Água para beber era a trazida de casa em cantis ou garrafões ou a da rede precária instalada para fazer o concreto, mas que servia também para matar a sede. Outra opção era aventurar-se na mata até chegar às então límpidas e despoluídas águas do Córrego Guará, que serviam também para um banho refrescante depois de um dia de trabalho.
A única opção de lazer dos participantes do mutirão e dos primeiros moradores era uma academia de judô, que oferecia a coqueluche da época, as lutas de telequete, febre nas emissoras de TV. Na mesma casa onde funcionava a academia, eram promovidas festinhas nos finais de semana, quando a bebida e a comida eram cotizadas entre os participantes. Afinal, eram amigos e parceiros da epopeia – naquela época costumava-se fazer amizades com vizinhos.

Luz de lampiões

Até que a primeira rede de energia elétrica chegasse, a luz vinha dos lampiões a querosene. Televisão, nem pensar. Depois de conviver com a poeira durante a metade do ano, ninguém se importava com as águas das chuvas, que, mesmo fazendo lama, aplacava a baixa umidade, os ventos razantes e o frio que fazia no Planalto Central antes dos paredões de concreto erguidos ao longo do tempo.
O pioneiro João Rivalino da Silva conta que o material utilizado para o encanamento era de péssima qualidade, a ponto de estourar quase todo quando era feita a ligação da água das primeiras casas. Os fios da energia eram soltos e corriam pelo chão, colocando em risco a segurança, principalmente das crianças. A poeira, a lama, o frio e as condições quase inóspitas do cerrado provocavam doenças frequentes nas crianças, principalmente alérgicas. Comércio não existia. Os mais próximos eram na Candangolândia ou no Núcleo Bandeirante.
As primeiras casas eram consideradas verdadeiras mansões para quem estava vivendo em barracos de lona ou madeira. O trabalho, todo braçal, cabia aos homens, mas as mulheres também ajudavam na confecção da comida e em outros serviços mais leves. A participação das mulheres era incentivada no acréscimo de pontos para o marido – a cada dia de trabalho, o participante somava pontos que lhe davam direito ao sorteio das casas no final.
Muitos dos participantes do mutirão nem sabiam lidar com cimento e tijolo, mas aprenderam com os mestres ou com quem já sabia o ofício. Em poucos dias, as casas iam surgindo. Nem o cansaço de tantas horas de trabalho, sob sol escaldante ou chuva, tiravam o entusiasmo daqueles que tinham a missão e o sonho de levantar um lar para sua família.

A visita do presidente do Chile, Eduardo Frei, ao mutirão provocou ciumeira no governo e pôs fim ao projeto
Ciumeira teria provocado fim do mutirão?

Mas a ideia do vitorioso mutirão começou a desmoronar por um motivo político. O então presidente do Chile, Eduardo Frei, considerado um ditador, veio a Brasília e começou sua visita pelo mutirão do Guará. Depois de conversar com o presidente da Novacap, Rogério Freitas Cunha, e os trabalhadores, Eduardo Frei simplesmente foi embora sem falar com qualquer outra autoridade brasileira.
O fato irritou a alta cúpula do Governo Federal, que acionou o prefeito Plínio Catanhede, exigindo o fim do mutirão. Outro fato teria irritado também as autoridades: a dona da rede Casas Riachuelo, a maior da época, também veio a Brasília conhecer o mutirão e, da mesma forma que o presidente do Chile, foi embora sem falar com as autoridades.
O sucesso do mutirão aumentava o ciúme das autoridades, tanto do GDF quanto do Governo Federal. Para resolver o problema, interno e externo, o prefeito Wadjô da Costa Gomide, que havia substituído Plínio Catanhede, enviou o autor da ideia, Rogério Freitas Cunha, à França para fazer um curso de computação. Acabou-se aí o mutirão. O próprio Rogério Freitas contou essas histórias ao então coordenador do mutirão, José Antonio Caramori Borges.

“Eu sempre acreditei na ousadia do homem”

Judson Seraine

“Eu me recordo que, por volta de 1968, o GDF, através da Novacap, ofereceu a nós servidores a oportunidade de construir nossas próprias casas em regime de mutirão. Foi o engenheiro Rogério de Freitas Cunha quem propôs a ideia de que cada servidor ajudasse o outro na construção de casas simples, mas capazes de abrigar a todos. A localização favorável, próxima ao SIA e ao Plano Piloto, tornou a ideia ainda mais atrativa e viável.
Eu sempre acreditei na ousadia do homem e, desde minha chegada a Brasília em 1958, sentia orgulho e coragem dos que traçaram o Plano Piloto. Eu residia em Taguatinga, já casado, e participava do mutirão para construir minha casa. Cada vez que ajudava alguém, acumulava pontos que aumentavam minhas chances de ser contemplado.
A logística envolvia a coleta de materiais, como areia e pedras, além da produção de tijolos na Novacap ou na Velhacap. O trabalho era intenso, envolvendo homens, mulheres e até crianças. Em 30 dias, cada grupo erguia 10 casas, tornando o processo eficiente e produtivo.
Fui contemplado em novembro de 1968, mas o espírito colaborativo continuou entre aqueles que ainda aguardavam. Muitos colegas, porém, recusaram-se a vir para o Guará, expressando desdém pelo mutirão. No entanto, para mim, a experiência foi marcante, proporcionando-me valorização e orgulho em participar da construção de uma cidade com horizontes promissores para o bem-estar familiar.
Para mim, o Guará superou minhas expectativas, proporcionando-me uma vida além do que imaginava. Originário de uma família de poucos recursos, hoje me considero realizado, com uma família feliz, vivendo na melhor cidade do mundo – uma cidade que ajudei a construir”.