O desespero e a ingenuidade de algumas pessoas, combinados com esperteza e ganância desmedida por dinheiro de uma família de charlatões travestidos de videntes, movimentaram mais de R$ 250 mil pelo pagamento de falsas promessas, enredo de uma novela que parece não ter fim. A cada semana, investigadores da 4ª Delegacia de Polícia descobrem novas vítimas e mais rolos da falsa vidente Vera Lúcia Nicolitch, 52 anos, que contava, segundo algumas denúncias, com o auxílio do filho, da filha e da nora. Eles atendiam numa casa na QE 13 do Guará II. Por enquanto, são 18 denúncias e cinco inquéritos contra a família, mas a polícia acredita que o novelo ainda tem cordão para desenrolar, porque acredita em mais pessoas extorquidas que ainda não quiseram, ou estão com vergonha, de denunciar os golpes em que cairam.
O último caso desvendado pela polícia envolve uma grande encenação que provocou prejuízo de R$ 200 mil a um servidor aposentado do Ministério das Relações Exteriores. O caso aconteceu em 2010, mas somente foi descoberto agora, com o andamento das investigações e publicação pela da imprensa .
A filha do servidor, na época com 18 anos, procurou “Dona Lúcia”, por indicação de uma amiga, em busca de cura para sua mãe, acometida de uma doença grave. Na primeira “consulta”, que custou R$ 100, na presença de mãe e filha, a falsa vidente informou às duas que alguém tinha feito um “trabalho” para provocar a discórdia na família delas. E pediu a presença do pai na segunda sessão. Com a ajuda de uma ajudante, que simulou incorporação de um espírito que dizia querer a vida dos pais da jovem “a custo de sangue”, a vidente começou seu plano de extorsão. Após a encenação da ajudante, Dona Lúcia simulou a incorporação de uma entidade, que seria uma preta velha chamada de “Vovó Cambinda”, que propôs combater a entidade maligna que queria a vida do servidor aposentado e sua mulher, através de um “trabalho”, que consistia no sacrifício de um boi ou uma quantidade de galinhas, e mais R$ 10 mil em espécie, prontamente transferidos para a conta repassada pela falsa vidente. Na terceira consulta, três dias depois, a família foi informada que o trabalho de Vovó Cambinda havia falhado e que seria necessária a repetição, também por R$ 10 mil. Após o pagamento, a vidente simulou novamente a incorporação da entidade, mas três dias depois a família foi informada que essa segunda tentativa também havia falhado e seria necessário um novo ritual, desta vez na cidade onde o aposentado e sua mulher moravam, no interior do Paraná.
Boi e sangue
Acompanhada do filho, responsável pelas finanças do negócio, e da ajudante, Dona Lúcia rumou para o Sul para uma terceira sessão de cura. Lá, simulando a entidade incorporada, a falsa vidente pediu uma bacia cheia de sangue de um boi preto de uma determinada raça. Como não sabia onde encontrar o boi da raça pedida, o aposentado foi convencido a pagar o valor do animal que ela, Dona Lúcia, resolveria depois, assim que retornasse ao Guará. Assim foi feito. Mas, antes de sair, a falsária se interessou por um quadro de cavalo exposto na sala da família, e foi informada que a autora da pintura era a filha do casal. Alegando que precisava analisar o que o quadro representava para a família, Dona Lúcia trouxe-o para Brasília e dois dias depois ligou para os clientes informando que, enfim, o trabalho havia dado certo.
Alguns meses depois, a família voltou a Brasília e novamente procurou a vidente e a filha relatou que uma pessoa próxima a ela havia morrido. Foi o mote para Dona Lúcia afirmar que a pessoa morta era “Iluminada” e teria morrido no lugar da jovem após terem feito um “trabalho” para matá-la. A família foi então convencida a pagar por um novo trabalho para garantir a paz do morto, que estaria sem sossego espiritual. Mais dinheiro na conta da falsária.
Desconfiada que a família estava sendo lesada, a filha do casal resolveu pesquisar sobre o espiritismo e descobriu que os “trabalhos” prometidos pela vidente não condiziam com as doutrinas espiritais. Foi quando descobriu que o pai já tinha repassado à Dona Lúcia cerca de R$ 200 mil, sem que ela (a filha) soubesse. Quando viu na imprensa a notícia da prisão da quadrilha de videntes, a jovem resolveu procurar a 4ª DP para contar seu caso. Mesmo dez anos depois do acontecido, os falsários poderão responder pelo crime, de acordo com o delegado adjunto da 4ª DP, João Ataliba Neto. “A vidente vai responder por todos esses crimes de extorsão e estelionato, mesmo eles tendo ocorrido dez anos atrás. Ela abusava da fé e da fragilidade das pessoas para ganhar dinheiro. Estamos esperando novas vítimas procurarem a delegacia”, explica.
Carteira de CNH
Mas as denúncias contra vidente do Guará não param. À medida que novos casos são publicados, surgem novas vítimas dela. Um jovem casal procurou a polícia informando que teria sido vítima de Dona Lúcia, ao pagar R$ 4 mil para garantir a aprovação na prova do Detran para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) dele, e a cura de um problema de saúde dela.
O casal disse ter pago R$ 1 mil pelo “trabalho” da CNH e R$ 300 para a compra de charuto, pedidos pela irmandade. Reprovado na prova do Detran, o rapaz voltou à falsária para reclamar, mas foi convencido a pagar mais R$ 500 para retirar mais “obstáculos espirituais”, deixados por espíritos malignos que teriam impedido a aprovação. Desconfiado, ele não quis pagar pelo novo pedido, mas a mulher pagou mais R$ 1,5 mil por um novo trabalho de “abertura de caminhos profissionais”, além de R$ 1 mil para cura de um refluxo. Para ajudar na cura, a vidente recomendou à jovem tomar chá de Melissa, uma planta ornamental e medicinal. Após tomar o chá, a cliente passou mal com fortes dores abdominais e teve que ser internada. Depois que viu a notícia da prisão, os dois procuraram a polícia para relatar seu caso.
18 denúncias
Até agora, os investigadores da 4ª DP receberam 18 denúncias contra a vidente guaraense. O mais recente golpe denunciado teria ocorrido em abril deste ano, quando mãe e filha contrataram os serviços de Dona Lúcia por R$ 3,6 mil. Após a primeira consulta da jovem, a falsária foi ao trabalho da mãe dela para dizer que a filha estava sendo perseguida por espíritos malignos e estaria correndo risco de vida, e o afastamento deles custaria R$ 1,8 mil. Para convencer as duas, Dona Lúcia simulou vomitar pedaços de carne e usar corante em uma bacia de água para simular sangue durante um ritual. Assustadas, elas resolveram pagar o valor pedido pelo ”livramento”. Mas o assédio a elas continuou. A falsária alegava que as clientes permaneciam envoltas de entidades do mal que tinham a intenção de matá-las. Em pânico, ambas entregaram joias e peças de vestuário como forma de pagamento pelos serviços espirituais. Durante o novo ritual, a falsa cartomante afirmou que o filho da mulher seria atingido por uma bala perdida e morreria, e a filha seria acometida por um câncer no estômago. “A vidente disse que seria necessário pagar R$ 1,5 mil para cada uma de sete entidades que seriam usadas em uma amarração para evitar a tragédia na família”, conta o delegado Ataliba. Para deixar a simulação mais convincente, a golpista pegou uma bacia com água e pediu uma camisa usada pelo filho. A blusa foi colocada no recipiente e, depois, retirada. A golpista pediu que a mulher torcesse o tecido e, ao fazer isso, a água ficou avermelhada. A vidente afirmou que o destino do filho da mulher seria a morte caso não pagasse. Desta vez, desconfiada, a vítima não efetuou o pagamento.
A polícia descobriu os golpes de Dona Lúcia a partir da denúncia de uma moradora do Guará, que teria sido extorquida em mais de R$ 20 mil em dinheiro e objetos. A vítima contou aos investigadores que procurou a vidente em agosto de 2019 para a realização de um serviço do tipo “amarração para o amor” – ela havia se separado do marido e queria trazê-lo de volta -, por R$ 1,5 mil, pagos em espécie, com o início do serviço marcado para o dia seguinte. Durante a primeira sessão, Lúcia teria simulado a incorporação de uma entidade espiritual denominada “Exu Tranca Rua”. A nora Luana, que acompanhava a sessão e a simulação de Lúcia, aconselhou a vítima a não desafiar a entidade, porque outras dez entidades que trabalhariam para “Exu Tranca Rua” queriam levar a filha dela. Para evitar o sequestro da filha, a vítima teria que pagar R$ 11 mil para cada entidade sócia do exu. Temendo pela vida da filha, a mulher entregou à quadrilha mais R$ 5 mil em espécie e outros R$ 6 mil através descontado em uma máquina de cartão.
Mesmo após os pagamentos, a vítima, continuou sendo chantageada pela família até abril deste ano com ameaças que estariam sendo transmitidas pelas entidades. De acordo com a vítima, foram cerca de 15 encontros com Lúcia ou com sua filha Viviane, que também se apresentava como mãe de santo, quando era convencida a entregar mais dinheiro e bens materiais para que o serviço contratado fosse concluído. Entre as oferendas pedidas pelas entidades, a vítima entregou à quadrilha 18 perfumes franceses de diferentes marcas, mais de 500 garrafas de cerveja Heineken, roupas masculinas da Via Veneto e TNG (ambos eram ternos da cor grafite completos, inclusive com colete), 8 garrafas de whisky Johnnie Walker e Double Black, 19 espumantes da marca Chandon, rosas diversas, cravos vermelhos. Entre produtos e dinheiro, a família teria recebido cerca de R$ 24 mil em oito meses.
Além dos presos, Viviane Nicolitch, 33 anos, filha de Lúcia e irmã de Diogo, também é investigada como integrante da organização criminosa e é acusada de realizar supostos atendimentos espirituais. As mães de santo se apresentavam como “Dona Lúcia”, “Irmã Vera”, “Irmã Vivian” e “Dona Luana de Oxum” e atendiam na própria residência delas, na QE 13.
“Acreditamos que existem outras vítimas da quadrilha, mas elas precisam procurar a polícia para reconhecer os autores, para que possamos completar o processo”, pede o delegado João Ataliba.