As incertezas sobre a Covid-19, a mudança na rotina e a redução do contato físico e social com outras pessoas podem causar estresse, ansiedade, depressão, raiva, sobrecarga emocional e às vezes, como consequência, a violência doméstica. Nesses casos, por serem mais frágeis, as crianças são mais vulneráveis à impaciência dos adultos. Responsável por zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, o Conselho Tutelar está sentindo um aumento crescente de denúncias de maus tratos de vulneráveis nesse período de pandemia. Na proporção inversa ao aumento da demanda, os conselheiros cumprem redução da jornada de trabalho presencial, o que pode agravar ainda mais a situação. No Guará, por exemplo, apenas cinco conselheiros atendem uma população de cerca de 180 mil habitantes, incluindo a área urbana da cidade, a quadra Lúcio Costa, os condomínios horizontais em volta e o Setor de Oficinas Sul (que é região do Guará), sendo que o recomendado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é que haja um conselho para cada 100 mil habitantes. Além dos 1.600 casos em média acompanhados pelo Conselho – o atendimento não se resume à denúncia pontual, mas também ao aconselhamento familiar e verificação do cumprimento das medidas protetivas – o Conselho Tutelar do Guará recebeu 734 casos novos no ano passado e a previsão é que esse número dobre em 2020 por causa da pandemia.
O Conselho Tutelar do Guará está recebendo em média de seis a dez denúncias de violência contra jovens por dia, com aumento progressivo nas últimas semanas. O lado menos ruim é que parte dessas denúncias não se confirma, porque são feitas por vizinhos preocupados com gritos e discussões mais acirradas entre pais e filhos ou entre irmãos de idades distantes. “Quando vamos conferir, constatamos que boa parte das denúncias não configura agressão física e não passa de momentos de impaciência na família”, explica o conselheiro Afonso Alves, que está na sua terceira gestão no Conselho Tutelar do Guará. “O problema maior é que parte das agressões comprovadas ou da exaltação dos adultos é contra crianças com síndromes de TDH (dificuldade de atenção, hiperatividade e impulsividade) e autismo (dificuldade de comunicação, dificuldade com interações sociais, interesses obsessivos e comportamentos repetitivos)”, acrescenta.
Outra demanda recorrente nesse período de pandemia é a situação de conflito entre pais separados com guarda compartilhada dos filhos. “Por causa da preocupação com idosos em casa, muitos pais e mães evitam pegar os filhos na data estipulada pela Justiça, sobrecarregando o outro, o que gera o conflito. Aí eles recorrem ao Conselho mesmo tendo uma medida judicial definida”, conta a conselheira Maria Madalena Oliveira. Nesses casos, a recomendação é a parte prejudicada procurar a Defensoria Pública e não o Conselho Tutelar.
Para o atendimento presencial, o Conselho do Guará conta com uma casa na QE 26, onde os conselheiros podem receber as pessoas com toda a segurança sanitária recomendada – distanciamento, acrílico separando os dois lados, EPIs (equipamentos usados por profissionais da saúde).
O Atendimento presencial também é feito em casa e é nesse caso que mora o perigo, porque, segundo os conselheiros, não há como conferir ou garantir as medidas sanitárias por parte das famílias visitadas.
Contra a volta às aulas
A Associação dos Conselhos Titulares, que reúne 40 conselhos no DF, encaminhou ao governador Ibaneis Rocha documento se posicionando contrário à reabertura das escolas para aulas presenciais, previstas para o dia 27 de julho nas escolas particulares e 3 de agosto para as escolas públicas, para não colocar em risco a vida e a saúde de crianças, adolescentes e seus familiares.
“Mesmo com todos os protocolos exigidos das escolas o controle será muito difícil, porque vai ser difícil evitar o abraço, a divisão do lanche, do material escolar e garantir o uso de máscara. O comportamento de uma criança é imprevisível na maioria das vezes”, afirma o conselheiro Paulo César Santos.
De acordo com Afonso Alves, um estudo de uma universidade espanhola, o retorno de 20 crianças à escola pode representar 800 contatos com familiares e pessoas próximas em apenas dois dias. “Uma única pessoa contagiada nesse meio vai fazer um grande estrago num ambiente maior. Principalmente, porque a maior parte mora com avós e pessoas de idade, cardíacas, com diabetes, hipertensão e outras comorbidades, com quem elas ficam a maior parte do tempo em casa”, explica o conselheiro. Segundo ele, as escolas do Guará precisam de muitas adaptações para garantir o distanciamento entre os alunos. “Sem contar que a média de idade dos professores da rede pública do Guará está entre 40 e 50 anos, que é também grupo de risco”, completa.
Outra preocupação dos conselheiros é com a falta de testagem recomendada e de providências sanitárias para as pessoas envolvidas nessa volta. Segundo o conselheiro Lucas Vinícius Andrade, “a Convid-19 ainda é um vírus desconhecido. A cada dia surgem informações novas e ninguém ainda descobriu o tratamento e a prevenção definitiva”, ressalta. Os próprios conselheiros fizeram apenas uma testagem em um mês, quando o recomendado será no mínimo a cada 15 dias. “O atendimento presencial exige que na maioria das vezes temos que entrar nas casas das famílias denunciadas ou em acompanhamento, sem saber se tem alguém contaminado ou nós mesmo contaminados”, adverte Paulo Santos.
A Associação dos Conselhos Tutelares lembra no documento ao GDF que grande parte dos alunos terá que utilizar transporte público, o que pode aumentar o risco de contágio. Além disso, os alunos permanecerão juntos em sala de aula. O órgão pede para o governo estabelecer o retorno das atividades somente quando houver a redução da curva de contágio.
Pediatras criticam GDF
A Sociedade de Pediatria do Distrito Federal também é contra a retomada das aulas presenciais nas redes pública e particular de ensino. Em nota, a entidade afirmou que o afrouxamento das medidas de controle ao avanço do novo coronavírus realizadas pelo Governo do Distrito Federal tem impacto direto no aumento do número de casos.
“Desde então, notou-se um aumento significativo dos casos. Houve uma progressão rápida e considerável dos casos confirmados”, registrou. Para a entidade, a decisão do Executivo local é “precipitada”. “Se tratando de escolas, o comportamento é imprevisível e o número de assintomáticos é inestimável, tornando a possibilidade de contágio exponencial”, diz em nota a SPDF.
Os pediatras afirmam que “não recomendam o retorno das crianças às escolas”. “Atualmente, o Brasil é o único país que ainda apresenta média de mil mortos por dia, e o isolamento social é ainda, uma das poucas medidas eficazes no combate da propagação da doença”, adverte a instituição.