Em um sobrado como muitos outros no conjunto Q da QE 15, famílias receberão uma chance de recomeçar. São, principalmente, mães e filhos vivendo na rua e dependendo da caridade ocasional de outros. Na nova casa, além de não se separarem, estas famílias receberão alimentação saudável, uma cama quentinha, acesso a escolas, assessoria jurídica e apoio psicológico. Um dos entraves no acolhimento institucional a pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade, geralmente, é separar as famílias acolhidas, pois mulheres, crianças e homens precisam ir para unidades diferentes, que vão atender às suas peculiaridades. “Por conta dos laços sentimentais, da proteção e da convivência, muitas famílias optavam em seguir nas ruas a serem separadas”, explica a secretária de Desenvolvimento Social, Mayara Noronha Rocha. “Repensamos essa questão e chegamos a ideia de que seria necessário um espaço específico para preservar e viabilizar que essa família continue junta”, complementa.
A Casa de Passagem é mantida pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal através do Instituto Tocar. A instituição, fundada e presidida por Regina Almeida, existe há 20 anos e tem experiência em acolher pessoas que estejam em situação de rua. “Sou mãe de 4 filhos e em alguns momentos da minha vida passei por muita dificuldade e precisei ser amparada. Esta casa serve para acolher famílias que precisam urgentemente de um lar”, conta Regina. O Instituto acolheu, em outras unidades 1.131 pessoas de abril a dezembro de 2020.
Regras e rotina
Na casa as famílias podem ficar por até 3 meses. O local foi adaptado para receber cerca de 30 pessoas. Estas famílias são selecionadas por uma rede composta de órgãos públicos de assistência social e organizações civis. Só estão aptas a hospedarem-se na casa as famílias que consigam manter a rotina e seguir as regras do local.
Assim que chegam, todos recebem um kit de higienização, com produtos para banho, higiene bucal e toalhas, além de roupas devidamente higienizadas. O local fornece roupas aos beneficiários, mas ainda assim, eles podem manter alguns objetos pessoais em um armário logo na entrada. Os horários são restritos: na Casa de Passagem quem quiser sair durante o dia só pode fazê-lo após as 9h e precisa retornar no máximo às 19h. Salvo em casos especiais, por conta do emprego ou tratamento de saúde.
As crianças devem voltar a frequentar a escola e a casa está se preparando para que possam assistir as aulas online durante a pandemia. Há uma sala de televisão e um terraço para momentos de lazer. No terraço também é onde os beneficiários podem lavar as roupas pessoais e roupas de cama e banho. Afinal, quem está na casa participa ativamente das tarefas domésticas, da lavagem da louça à faxina. No refeitório do térreo, as famílias recebem 5 refeições diárias, em escala montada para manter o afastamento recomendado durante a pandemia.
Autonomia
“O mais importante é reintegrar estas famílias à sociedade. Para isso, oferecemos tratamento psicológico, encaminhamento aos serviços de saúde, vamos atrás dos documentos das pessoas para que estas pessoas possam retomar a sua autonomia”, explica a psicóloga Annalya Garcia, coordenadora regional do Instituto Tocar. Os adultos recebem capacitação em diversas áreas, e são encaminhados ao mercado de trabalho. Tudo para que possam estar reintegrados após os 3 meses de estadia. A casos de alcoolismo e outros vícios comuns em pessoas vulneráveis é dada atenção especial, com ajuda do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas do Guará.
Comunidade protesta
O anúncio da abertura da Casa da Passagem na QE 15 gerou uma resistência dos moradores do conjunto. Um abaixo assinado foi protocolado na Administração Regional do Guará no dia 5 de abril com 42 assinaturas de moradores daquele conjunto. Apesar de citar especificamente o nome do Instituto Tocar e o acolhimento de moradores de rua, os residentes afirmam que a entendem a importância do trabalho do Instituto, mas o local onde está instalado contraria a legislação urbanística.
Leia o abaixo assinado protocolado na Administração pelos moradores
“Nós moradores não temos qualquer inconformidade com a atividade desenvolvida pelo Instituto Tocar, nossa divergência é apenas legal, com base na Lei de Uso e Ocupação do Solo. A referida lei estabelece, com clareza, as especificidades de cada atividade dentro da região administrativa e os locais de permissão da referida atividade, ou seja, até para que não haja desvirtuamento das ocupações misturando-se atividades de uso familiar, comercial, industrial e institucional. A área onde foi implantada a casa de passagem fica em uma área de RO1 (uso para unidade unifamiliar), a atividade assistencial com código de atividade CNAE 8730-1/99, de acordo com as definições da lei, não é permitida nesta área RO1, conforme Tabela de Usos e Atividades, apenas em área CSII3 e INST da tabela”, explica Evandro Fraga Ferreira, morador do conjunto. “Temos também a preocupação com os próprios futuros assistidos, a previsão é de, em uma casa acomodar-se até 50 pessoas. Não há, de nossa parte, questionamentos quanto à necessidade da prestação dos serviços prestados pela Instituição Tocar, porém, estes devem ser prestados dentro da legislação, as áreas existem, portanto, é premente que se regularize a situação para depois haver a prestação de assistência”, completa o morador.
Para a psicóloga e presidente do Instituto Tocar, Regina Almeida, a comunidade vai entender que o Instituto não vai interferir em suas rotinas e acabará por ajudar estas famílias acolhidas. “Entendo a preocupação das pessoas e tive a oportunidade de conversar com algumas delas. Acredito que são pessoas generosas que vão nos apoiar muito. Não recebemos qualquer um que aparece em nossa porta, e nem doamos alimentos ou dinheiro aqui. Recebemos famílias que passaram por triagem cuidadosa, que foram selecionadas e apenas querem uma nova vida. Integrá-las a uma comunidade é a melhor forma de fazer isso. Conto com a solidariedade de todas as famílias das proximidades para conseguirmos ajudar essas pessoas”.