A mistura de omissão na fiscalização, ganância da especulação imobiliária e crise econômica está transformando a QE 40 e o Polo de Moda numa das três localidades mais violentas do Distrito Federal. As duas quadras – que na verdade é uma só, porque o Polo também é QE 40 – foram incluídas no mapa das três regiões mais inseguras do Distrito Federal, de acordo com o mapa da criminalidade da Secretaria de Segurança Pública e Paz Social, com base em ocorrências policiais registradas nas delegacias de polícia. Mais até do que as históricas Ceilândia e Samambaia, até então consideradas as regiões mais perigosas do DF.
Com o levantamento de todas as ocorrências policiais em mãos, a Secretaria mapeou as “manchas criminais” do DF, aquelas onde mais ocorrem crimes de qualquer natureza. Além das duas quadras do Guará, as proximidades da Rodoviária do Plano Piloto e Setor Comercial Sul e o Cruzeiro completam o quadro do medo. O pior é que a QE 40 (incluindo o Polo de Moda) consegue ser mais insegura delas.
Em relação ao restante da região do Guará nem é necessário recorrer aos índices da Secretaria de Segurança. A quadra é, de longe, a mais insegura da cidade, percepção fácil de ser comprovada com as notícias de assaltos, furtos, brigas e homicídios principalmente no Polo de Moda, publicadas na imprensa e na Internet, como foi o caso do espancamento do jovem Daniel Rodrigues Freitas na semana passada (ver reportagem na página 3), assunto que viralizou na imprensa de todo o país.
O vídeo que mostra cinco rapazes chutando Daniel no chão até à morte é mais um dos muitos casos semelhantes que acontecem com frequência na quadra, felizmente nem sempre com fim tão trágico. Na origem da violência sempre está o tráfico e o consumo de droga, que circula com mais facilidade nessa região do Guará.
Locação barata atrai submundo
A explicação para o aumento da violência na QE 40/Polo de Moda está no desvirtuamento dos objetivos da quadra, criada para ser um polo de desenvolvimento, mas transformada ao longo do tempo em “polo de quitinete”. Os lotes, que deveriam ter sido ocupados por algum tipo de atividade econômica e no máximo a família dos seus proprietários em mais dois pavimentos, foram transformados na maioria das vezes em edifícios residenciais com até sete pavimentos, abrigando em alguns deles mais de 20 quitinetes.
Como são irregulares e pequenos, esses imóveis atraem o inquilino de menor poder aquisitivo por serem mais baratos e, pior, sem necessidade de comprovação de antecedentes criminais ou de cadastro. “É pra lá que vão as pessoas que não conseguem alugar em outro lugar por causa das exigências de documentos ou de ficha limpa, ou que pretendem ficar por pouco tempo em um lugar enquanto praticam crimes”, explica o delegado chefe da 4ª Delegacia de Polícia do Guará, Anderson Espíndola. Essas facilidades tem atraído também cada vez mais garotas de programa, de acordo com a quantidade de anúncios publicados na Internet, tornando o Polo de Moda num dos dois endereços principais da prostituição no Distrito Federal – o outro é a região compreendida entre as 712/13 e 312/13 da Asa Norte. “Mas nem todas moram no Polo de Moda. Uma parte apenas aluga quitinetes na quadra para realizar programas sexuais e retorna para suas casas no Entorno ou em outras regiões do DF”, completa o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar do Guará, coronel Everaldo Aragão.
Contribui para esse desvirtuamento a omissão dos órgãos de fiscalização, que permitiram e permitem a construção de moradias irregularidades numa região que não estava preparada para receber tanta gente. À polícia cabe apenas agir sobre a violência consumada e, mesmo assim, é considerada culpada ou omissa por parte dos moradores sempre que acontecem furto, roubo, briga ou homicídio na quadra.
Polo de quitinete
Criado para ser um centro de desenvolvimento econômico, a QE 40 e depois o Polo de Moda deveria abranger toda a cadeia industrial de vestuário, mas foi tomado por residências e por comércios de todos os segmentos. De acordo com levantamento da Associação do Polo de Moda, existem pouco mais de 200 empresas ligadas ao setor de vestuário atuando no local com a venda de matéria-prima, confecção e comercialização de roupas, quando deveria existir pelo menos o dobro. “Muitas fábricas menores acabaram ficando apenas com a parte térrea do prédio e os andares de cima viraram residenciais”, explica a presidente da Associação, Najla Maria Gonçalves.
Por meio do Programa de Apoio ao Empreendimento Produtivo do Distrito Federal (Pró-DF), programa de fomento à indústria do governo do Distrito Federal, centenas de costureiras e empresários receberam lotes no setor por até 5% do valor original de mercado. Entretanto, muitos dos que foram contemplados com os terrenos não tiveram condições de pagar pela edificação dos prédios ou de gerar os empregos previstos no acordo de concessão dos lotes.
A dificuldade em manter um negócio fez com que muitos contemplados vendessem os seus direitos a especuladores. “Na hora de direcionar os lotes, deram para confecções muito pequenas, que não tinham condições de construir e aumentar sua produção”, teoriza a empresária Andréa Monteiro, dona de uma confecção no Polo. “Então, eles construíram uma fábrica embaixo e venderam a parte de cima. Atualmente, muitas empresas, confecções pequenas que ainda são efetivas, estão em apuros porque quem vendeu os apartamentos não tinha os documentos”.
No meio do problema surgiram os especuladores imobiliários, que aproveitaram a oportunidade para comprar os imóveis a preços muitas vezes irrisórios, apostando na valorização futura. Como não tinham o objetivo de produzir, mas apenas especular e ganhar dinheiro fácil, eles foram transformando os imóveis adquiridos na maior quantidade de espaços possíveis, para venda ou aluguel. Numa avaliação visual, conclui-se que pelo menos 70% dos 432 terrenos do Polo de Moda possuem de quatro a seis andares de quitinetes ou apartamentos, o que corresponde a cerca de 300 prédios x 12 espaços em média, ou, cerca de 4.600 quitinetes ou apartamentos. Se multiplica essa quantidade por 1,5 pessoas por imóvel, teremos cerca de 7 mil habitantes, ou, pelo menos 5 mil a habitantes a mais previstos para a quadra – de acordo com o projeto original, seriam permitidas moradias apenas para as famílias dos empresários que tocariam o negócio no prédio, em no máximo mais dois andares.
Tentativas de regularização
O problema existe, é inegável e precisa ser resolvido, mas é difícil encontrar uma solução que não fira as leis de uso e ocupação do solo no Distrito Federal, se não houver uma adequação às normas por parte de cada prédio construído fora dos padrões. De vez em quando são retomadas as discussões sobre a necessidade de regularização da QE 40/Polo de Moda, mas a maioria não passa de intenção política.
De acordo com um assessor da Terracap ouvido pela reportagem do Jornal do Guará, que prefere não declinar o nome por motivos hierárquicos na empresa, a solução teria que partir da alteração da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) do Guará e do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) do DF para permitir a ocupação multifamiliar e construções acima de três andares da previsão inicial para a quadra, e revisão dos contratos caso a caso do PRO-DF, que oferecia um incentivo de até 95% na quitação do terreno a quem cumprisse as premissas da concessão, que eram a geração de uma quantidade mínima de empregos e comprovação de exercer a atividade a que se propôs. “Além das alterações das leis, o concessionário do terreno teria que pagar à Terracap a Outorga Onerosa de Alteração de Uso (ONALT), que é a diferença pela valorização do terreno no caso de mudança de destinação ou ampliação da área construída”, explica o técnico.
Em agosto, o deputado distrital Rodrigo Delmasso, vice-presidente da Câmara Legislativa promoveu uma audiência pública online para discutir as possibilidades de regularização da quadra. “Em quase todos os lotes, embaixo tem o comércio e em cima, as moradias, com quitinetes e apartamentos de um ou dois quartos. Essa é a realidade a ser discutida”, descreve o deputado. Diante desse cenário, ele entende ser necessário promover a regularização das unidades habitacionais consolidadas a fim de colocar um freio no desenvolvimento desordenado do local. O parlamentar enumerou os problemas enfrentados pelos moradores do setor, como trânsito, falta de estacionamento e ausência de coleta de lixo adequada, e sugeriu a recategorização das vias públicas e a urbanização da área, com instalação de calçadas e papa-lixos. “Precisamos de um projeto de recategorização para o Polo de Moda”, afirma.
Entretanto, a audiência não apresentou conclusões técnicas que permitam a regularização do Polo no formato em que está. Apenas intenções e possibilidades.
Enquanto a solução não chega, a violência no Polo de Moda aumenta cada vez mais. Até quando?