“Provavelmente muita gente vai se dar conta do transtorno mental agora. Na depressão, a pessoa fica desanimada, não quer ver ninguém. Quando estava no isolamento, isso, às vezes, acabava ficando camuflado”, explica a médica Helena Moura. Ela atua como psiquiatra há 11 anos no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do Guará, além de ser preceptora da residência de psiquiatria do Hospital de Base e professora da Universidade de Brasília (UnB).
Em entrevista, Helena Moura analisa a relação entre os transtornos mentais e a pandemia. A psiquiatra também explica a importância do acesso à informação e ao tratamento das doenças mentais, além de traçar o provável perfil dos casos do DF.
Quais foram os impactos da pandemia na população sob o ponto de vista mental?
No início, a gente estava falando bastante da pandemia do medo do que estar por vir, o que gerou uma ansiedade muito grande. Infelizmente, de um tempo para cá, acabou somando a pandemia do luto. Muitas pessoas perderam seus familiares ou adoeceram, e sofreram com sequelas neuropsiquiátricas da covid. [As pessoas] Também [estão] sofrendo com as perdas que se concretizaram. O luto de ter perdido o emprego e um estilo de vida que gostava e não pôde ter. São todos fatores que contribuíram para prejudicar a saúde mental da população.
“O transtorno mental tem um impacto na sociedade como um todo. Ele não afeta só aquele indivíduo. As pessoas que estão em volta sofrem junto”
Quais foram os problemas mais recorrentes?
Tivemos um aumento muito grande dos casos de ansiedade e depressão. Muitos casos de depressão novos e que pioraram na pandemia. Pessoas que já vinham fazendo tratamento, mas, em razão desse aumento de fatores de estresse, acabaram piorando. Muitos casos de piora em relação ao uso de substâncias. Pessoas que já tinham problemas com álcool e com drogas e que já tinham parado, mas, em razão da pandemia, recaíram. Ou pessoas que não costumavam beber com muita frequência ou não costumavam exagerar no álcool, e começaram a fazer [uso dessas substâncias].
Sobre os novos casos, houve uma mudança no perfil dos diagnosticados?
No Brasil, a gente ainda não conseguiu traçar exatamente essa mudança. Mas o que a gente sabe é que, em outros países e em outros momentos de crises muito grandes, houve um aumento de alguns problemas de saúde mental em populações mais vulneráveis. Mas o que a gente chama de vulnerabilidade, depende do tipo de crise. A crise econômica de 2008 na Espanha afetou pessoas de escolaridade alta. Os mais escolarizados e com mais recursos financeiros foram os que mais tiveram problemas graves com uso de álcool. O que a gente espera que possa acontecer no Brasil é que tenha tido um aumento [dos transtornos] na população mais idosa, que ficou mais isolada e mais amedrontada. A questão do consumo de álcool pode ter aumentado também entre aquelas pessoas de mais alta renda, porque tinham recursos para comprar bebida alcoólica.
Sabemos que houve um aumento da venda dos medicamentos antidepressivos, ansiolíticos e de automedicação. De que forma esses números se refletem nos hospitais?
Havendo um aumento de prevalência de transtornos é natural que ocorra o aumento também da venda das medicações, e que é positivo no sentido de, quanto mais cedo eu tratar e de forma correta, evita-se complicações. Uma complicação de uma depressão é, por exemplo, uma tentativa de suicídio ou a pessoa ficar cada vez mais disfuncional, ter dificuldade de cuidar dos próprios afazeres. Sempre gosto de ressaltar que o transtorno mental tem um impacto na sociedade como um todo. Ele não afeta só aquele indivíduo. As pessoas que estão em volta sofrem junto. Conseguindo tratar alguém, eu não estou só conseguindo ajudar aquela pessoa, mas prevenindo, até mesmo, o transtorno mental nas crianças e nos familiares. O que nos preocupa mais é a automedicação.
Por quê?
As medicações de tarja preta, que são calmantes e tranquilizantes, já são campeões de vendas no Brasil. São medicações que trazem um alívio imediato, mas não tratam de fato. A pessoa acha que aquele medicamento que aliviou na hora é que está tratando. Só que não é. Daqui a pouco ela vai estar tomando uma dose maior. O problema vai continuar presente e pode ir se agravando.
Durante esse período, os tratamentos de saúde mental acabaram sendo impactados, mas os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) permaneceram abertos no DF. Como foram os atendimentos aos transtornos mentais na pandemia?
Acabamos de publicar um artigo que saiu na The Lancet Regional Health, [revista] voltada para os estudos realizados na América, que conseguiu mostrar algo que já era nossa percepção como clínico, e quem trabalha no SUS já estava percebendo isso. Houve uma queda muito grande nos atendimentos no início da pandemia, depois foi normalizando. O que nos surpreendeu e nos preocupou, porque a gente já sabia que seria um período de aumento de demanda. O que nós vimos foram os ambulatórios e os Caps vazios. Em parte, porque as pessoas podiam estar com medo de estar em contato com algum serviço de saúde. Outras achavam que haviam fechado. Algumas pessoas não podiam sair de casa, eram grupo de risco. Isso também pode ter prejudicado. Nosso estudo mostrou uma queda de 30% nos atendimentos. Os atendimentos de grupo, que são extremamente importantes pensando no caso de transtornos por uso de substâncias, de álcool e de drogas, caíram quase 70%. É possível que tenha sido criada uma demanda reprimida. Pessoas que já estavam em tratamento podem ter piorado, porque não puderam ter a continuidade e a manutenção. E pessoas que não tinham problema, passaram a ter razão em toda essa circunstância. Agora a gente está com duplo trabalho, de atender aqueles casos que se agravaram e de atender a demanda nova.
Quais são os próximos passos para avançar no combate aos transtornos mentais?
A gente já tinha uma carência, antes mesmo da pandemia, de serviços de saúde mental. É uma área que a gente sabe que sofre muito preconceito e estigma, e que recentemente foi se quebrando. Cada vez mais as pessoas estão aceitando procurar essa ajuda. Mas ainda é deficitário. A gente precisa facilitar o acesso e isso passa também pelas redes primárias de saúde, que muitas vezes podem atender casos mais leves. A participação do médico da família é superimportante no diagnóstico da saúde mental. Às vezes as pessoas não sabem e não se dão conta que elas estão se sentindo e se comportando [de maneira] diferente. Elas não sabem que aquilo é depressão e que precisam de tratamento. Precisa aumentar a informação. Também temos que ajudar a reverter as causas que levaram aos sintomas. Procurar oferecer algum tipo de amparo para que diminua os fatores de estresse.
Como as pessoas podem saber que estão com algum transtorno mental?
A depressão e a ansiedade são os transtornos mais prevalentes e provavelmente os que tiveram maior aumento na pandemia no Brasil. Na depressão, as pessoas pensam que é só tristeza, mas não só isso. A depressão pode transparecer de muito desânimo e perda de interesse em coisas que a pessoa gostava muito. Pode ficar mais irritada e impaciente e não querer conversar com ninguém. Dormir demais ou perder totalmente o sono. Comer demais ou perder totalmente a fome. Esses extremos também são comuns. Uma visão muito negativa de tudo e de si. A ansiedade se descreve como aquela sensação de medo. Parece que, de repente, a vida virou um filme de suspense. A pessoa fica o tempo todo com uma sensação de que algo muito ruim está para acontecer. Isso se reflete não só nos pensamentos, mas também fisicamente. Fica com o coração mais acelerado, tem dificuldade para respirar e a musculatura muito tensa, o que pode se transformar numa dor. Também interfere no sono e no apetite. No álcool é importante a gente se desfazer de alguns estigmas. Da ideia de que o alcoolista é uma pessoa que está na sarjeta, que tem baixa renda e que só bebe cachaça. A gente tem que estar muito atento para a relação que a pessoa tem com a bebida, como todas as formas de aliviar a ansiedade e de se divertir têm que ter o álcool presente. Infelizmente, muita gente usou o álcool como fonte de lazer na pandemia.
Quando a gente fala do abuso de medicação, existe uma doença específica?
Se torna um problema quando o paciente depois de muito tempo usando tenta reduzir e começa a se sentir mal de novo. Isso pode acontecer por dois motivos. O primeiro deles porque a pessoa não estava de fato tratando. Como eu disse, essas medicações só aliviam. Pode ser aquela ansiedade que ficou escondida debaixo do tapete. Pode ser também que a medicação tenha gerado mudanças no organismo daquela pessoa, que, quando tenta parar ou diminuir, sofre com sintomas de abstinência. A pessoa perde o parâmetro do que é uma reação normal e tende a querer o tempo todo se medicar. O abuso é perigoso pelos riscos da substância em si, que podem causar mudanças no organismo, e também por não estar de fato tratando os sintomas de ansiedade.
Estamos vivendo o arrefecimento da pandemia. Ainda é momento de alerta para a saúde mental?
Provavelmente muita gente vai se dar conta do transtorno mental agora. Na depressão, a pessoa fica desanimada, não quer ver ninguém. Quando estava no isolamento, isso, às vezes, acabava ficando camuflado. Aquele desconforto todo se transformou em algo maior e está impedindo a retomada daquela pessoa para a vida normal.