Uma sucessão de equívocos e omissões sobre a execução de um projeto bem intencionado está colocando o governo numa sinuca de bico, sem saber o que fazer. Depois de consumir cerca de R$ 1,2 milhão, a implantação da ciclofaixa no centro do Guará II aguarda uma solução, que passa por dois caminhos: a demolição completa do que já foi feito, com o prejuízo do que foi gasto, ou a readaptação do projeto para tentar amenizar a ira da maioria de moradores e motoristas da cidade.
Em duas reuniões com os moradores, os representantes do governo, representado pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), da Se-cretaria de Cidades e da Administração Regional, até tentaram salvar a obra ou parte dela, mas sentiram que a missão é quase impossível, principalmente em ano eleitoral. Nessas reuniões, os técnicos mal conseguiram explicar o projeto e as propostas para amenizar os impactos e foram logo hostilizados por líderes comunitários e moradores, indignados com a retirada de espaço dos veículos e com a falta de comunicação do que foi projetado e estava sendo feito. Quase calados, os técnicos tiveram que ouvir críticas duras e insultos, alguns acima do razoável.
O clima das reuniões refletiu o descontentamento da maioria da população guaraense com as interferências no trânsito, manifestado nas redes sociais. Desde janeiro, a ciclofaixa é, de longe, o assunto mais comentado em grupos de WhatsApp e Facebook da cidade, a maioria absoluta contra o projeto. O clima chegou a tal ponto que a população – especialmente as lideranças comunitárias -, sequer aceita ouvir as propostas que o governo tenta apresentar para amenizar os impactos e só concorda com a demolição completa do que já foi feito no trecho 1, na QI 23. Em relação aos trechos 2 e 3 do projeto, entre a 4ª. Delegacia de Polícia e o edifício Pedro Teixeira, no final do Guará II, nem se discute mais, porque o próprio governo já desistiu de aproveitá-lo, diante da virulenta resistência das lideranças e dos moradores.
Oportunidades para corrigir os erros
Enquanto afaga o movimento que protesta contra a obra ao decidir pela sua interrupção, o governo esbarra em duas outras dificuldades, a primeira delas de ordem legal, porque a obra é uma compensação urbanística, que está sendo paga pelas incorporadoras que construíram grandes edifícios na orla e no centro do Guará II no período de 2008 e 2010 e foi negociada à época pelo Ministério Público com o então Governo Arruda. Como não foi executada desde então por falta de providências dos governos subsequentes de Wilson Lima e Rogério Rosso (tampões), depois de Agnelo Queiroz e Rodrigo Rollemberg, que tinham a responsabilidade de apresentar os projetos da compensação, o Tribunal de Contas do Distrito Federal resolveu intervir e exigir que o Governo Ibaneis cumprisse o acordo com as incorporadoras. Mas, para atender à exigência do TCDF, o governo atual resolveu lançar mão do projeto elaborado na época por técnicos da então Secretaria de Habitação, atual Seduh, portanto há quase 12 anos, aprovado por uma Comissão formada por representantes da própria Secretaria, da Secretaria de Transportes (atual Secretaria de Mobilidade) e do Detran, sem a preocupação de atualizá-lo para a realidade atual da cidade.
Quando foi elaborado, o projeto que previa interferências radicais na via central, com perdas significativas de espaços para os carros com a justificativa de melhorar a mobilidade urbana com a ampliação dos espaços para bicicletas e pedestres, e não considerou as projeções para o crescimento da cidade, que poderiam acrescentar mais cerca de 20 mil novos moradores ao Guará II. Os técnicos que elaboraram o projeto não se atentaram para o fato de que, na época, existiam ainda mais de 20 projeções a serem ocupadas, incluindo o Centro Comunal I (entre QEs 15 e 26) e o Centro Comunal II (entre as QEs 19 e 34), ao lado do edifício Consei, que iriam derramar uma grande quantidade de veículos no trânsito da via.
Além de não ter analisado as perspectivas futuras e os impactos da obra sobre o trânsito, outro erro cometido pelo governo na época foi não ter discutido o projeto com a comunidade. Se o tivesse feito, certamente não teria exagerado na dose. O máximo que fez foi promover a protocolar “audiência pública”, uma mera formalidade técnica exigida para a aprovação de um projeto em área pública, mas que nem sempre tem suas decisões respeitadas. Além disso, de propósito ou não, a audiência não foi divulgada como deveria ter sido e foi prestigiada apenas por um grupo ligado às cooperativas habitacionais, que aproveitou a presença do governo para reivindicar uma área no Guará para o segmento. Na ciclofaixa mesmo não estava interessado.
Mas o governo teve uma segunda oportunidade de adaptar o projeto para a realidade de 2021/22 e não fez. Preferiu aproveitar o projeto que estava pronto e o entregou ao grupo de incorporadoras para o cumprimento da compensação urbanística. As incorporadoras, por sua vez, que sempre estiveram à disposição para cumprir o acordo, se limitaram a contratar uma empreiteira para executar o serviço.
E houve também uma terceira oportunidade, quando a obra foi iniciada em outubro do ano passado e começaram a surgir às primeiras críticas ao projeto, até então desconhecido da população. Além de ter cometido outro erro ao não dar publicidade ao que estava sendo feito em área pública, nem com as placas com as informações sobre a obra, o governo ignorou a insatisfação da comunidade, a começar pela Administração Regional do Guará, que nem se preocupou em saber quem estava invadindo o seu quintal e simplesmente lavou as mãos como se nada tivesse a ver com o assunto. Aliás, questionada pelo Jornal do Guará, a Administração ficou batendo cabeça para descobrir qual o órgão do governo responsável pela obra, até descobrir depois de quatro tentativas. E mesmo quando descobriu, fez ouvido de mercador.
Sem ouvir a pressão popular
O erro maior do governo, entretanto, foi esperar tanto tempo para se sensibilizar com a pressão popular contra a obra. E quando o fez, depois de uma série de reportagens do Jornal do Guará sobre o assunto, já não foi possível aplacar a ira dos moradores descontentes. A gota d`água foi o fechamento do acesso ao estacionamento do comércio da QI 23, uma intervenção de engenharia considerada amadora para os olhos de quem via.
Mesmo tarde do que nunca, o governo finalmente resolveu auscultar o que a comunidade protestava, mas aí a situação já estava insustentável. E deu no que deu. Com os ânimos dos moradores exaltados, não dá mais para propor até mesmo algumas adaptações à obra, para torná-la mais aceitável, e com isso recuperar parte do que foi investido.
O simples fato de demorar na demolição do que foi feito, porque precisa do aval do Tribunal de Contas do DF, o governo continua sofrendo críticas da população, o que pode ser ruim em ano eleitoral.