Justiça confirma saída de casa de passagem da QE 15

Recurso impetrado por instituto e Secretaria de Desenvolvimento Social não foi aceito e atividades deverão ser encerradas até o final de fevereiro

Um imbróglio que se arrasta desde abril de 2020 teve seu desfecho na sexta-feira passada, 16 de dezembro. A 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios negou recurso do Instituto Tocar e da Secretaria de Desenvolvimento Social e confirmou a decisão de suspender o funcionamento da Casa de Passagem na QE 15 do Guará. O pedido foi negado pelo desembargador Diaulas Costa Ribeiro e acompanhado pelos vogais Robson Teixeira de Freitas e Arquibaldo Carneiro. Com a decisão, as atividades do instituto terão que ser encerradas até o final deste mês de dezembro. A ação tinha movida por seis moradores do Conjunto “Q” da QE 15, que sentiram prejudicados pela instalação da casa de passagem para atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade, principalmente moradores de rua, sob a alegação de que os vizinhos não teriam sido consultados como prevê a legislação, e que o movimento de saída e entrada de pessoas em horários inadequados e de viaturas de órgãos de segurança e de saúde  teria alterado a rotina de toda a quadra, trazendo insegurança aos moradores, além de desvalorizar os imóveis próximos.

 

A decisão inicial da Justiça para suspensão das atividades da casa havia sido proferida no dia 30 de agosto, pelo desembargador Diaulas Costa Ribeira, da 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, atendendo aos argumentos apresentados pelos moradores. Na decisão, o desembargador havia dado o prazo de 180 dias para a desocupação do imóvel com a atividade, ou seja, até o final de fevereiro de 2023. Questionado sobre as providências que tomaria diante da negativa do recurso, o Instituo Tocar respondeu à reportagem do Jornal do Guará que procurasse a Secretaria de Desenvolvimento Social, embora a ação tenha sido demandada pelo instituto. A Secretaria respondeu, através de nota, que “a desmobilização da casa está em fase conclusiva e de acordo com a decisão judicial”, mas não apresentou mais informações.

Dos reclamam os moradores

Na argumentação à Justiça, os moradores alegaram que a instalação do abrigo em área residencial feria a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei 1.0007/2022), que não permite a instalação de qualquer atividade não residencial sem a anuência dos vizinhos em quadras residenciais.
Desde quando o abrigo foi instalado, em abril de 2020, os moradores do Conjunto “Q” iniciaram um movimento para retirá-lo da quadra, inicialmente através de tentativas de negociação com o governo e depois através da Justiça. Eles reclamam que a rotina da rua e da quadra foi alterada com o movimento de pessoas circulando e pedindo ajuda, e com barulho de viaturas da polícia, da saúde e do Corpo de Bombeiros, para o atendimento de ocorrências.
Mas o principal argumento deles é que a localização da casa para esse tipo de atividade fere a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) da cidade, e que, portanto, não poderia ter sido autorizada sem a anuência da Administração Regional do Guará, a quem cabe a concessão do alvará de funcionamento de qualquer atividade não residencial, após consulta aos vizinhos. O imóvel está localizado num endereço chamado RO 1, “onde é obrigatório o uso residencial, na categoria habitação unifamiliar, sendo facultado, simultaneamente, o uso não residencial com atividade econômica realizada no âmbito doméstico, não sendo autorizado o acesso independente”. Esse tipo de atividades, segundo eles, caberia em um endereço classificado como RO 2, “que localiza-se ao longo de vias de conexão entre conjuntos e quadras, onde é obrigatório o uso residencial, na categoria habitação unifamiliar, sendo facultado, simultaneamente, o uso não residencial exclusivamente no pavimento diretamente aberto para logradouro público e independente da habitação”, segundo a Luos.

Na decisão, o desembargador Diaulas Costa Ribeiro admite que o funcionamento da casa até poderia ser permitida, “desde que houvesse anuência prévia e escrita da vizinhança, composta pelo conjunto de moradores que pudessem ser afetados pelo incômodo das atividades (Artigo 7º da Luos)”, o que não aconteceu. Os moradores garantem que nunca foram consultados nem antes e nem depois sobre a instalação da casa de passagem na rua.
“Ante às particularidades do caso, para que se preserve a dignidade das pessoas que até então usufruem dos serviços, bem como para que o Instituto se organize e, se entender pertinente, busque outro imóvel e o readapte à sua função, é razoável a concessão do prazo de 180 dias para que encerre suas atividades no imóvel”, escreveu o magistrado na sentença de desocupação, e estipulou ainda o pagamento de R$ 1 mil por dia para o caso de descumprimento da pena.

Contrariando a lei

“É bom ficar claro que não somos contra o programa de assistência a essas pessoas, mas desde que seja em um local adequado e instalado de forma legal, com alvará de funcionamento, porque está mexendo com toda a rotina dos moradores que já estavam aqui instalados”, afirma Pedro Pelissaro, um dos líderes do movimento para a retirada da casa de passagem da quadra. “A própria Administração Regional já reconheceu que não pode conceder alvará de funcionamento para a casa porque o zoneamento não permite. Se não tem alvará, por que consegue receber recursos do governo? Que lógica é essa?”, pergunta.
Pai de um jovem autista, Leandro Magalhães diz que adquiriu uma casa na rua ao vir do Rio de Janeiro, onde morava, por causa do ambiente de tranquilidade que percebeu para a vida do filho. “Depois da chegada da casa de passagem, a rotina dele mudou completamente. Fica agitado e se descontrola quando ouve gritos e quando o movimento aumenta muito na rua. Se a casa de passagem já estivesse aqui, não teria vindo pra cá”. Morador dos fundos da casa de passagem, Vanilto Alves de Oliveira reclama da quantidade de objetos jogados no quintal e no telhado de sua casa. “Já retirei almofada, chinelo e tenho que fazer limpeza constante de pontas de cigarro e até restos de comida. Já pedi providências à supervisora da casa, mas o problema continua”, conta.
“Tentamos dialogar com o governo e conscientizar a Secretaria de Desenvolvimento Social de que o local não era adequado para o funcionamento da casa, mas como não houve acordo, buscamos a Justiça, que reconheceu nossos direitos. Agora, aguardamos o cumprimento da sentença”, afirma Pedro Pelissaro.

Instituto reclama de “intolerância” dos moradores

Para a psicóloga e presidente do Instituto Tocar, responsável pela administração da casa de passagem, Regina Almeida, “essa intolerância dos vizinhos não se justifica. Estamos prestando um serviço que ninguém quer oferecer à sociedade, ao acolher pessoas em situação de vulnerabilidade. Como estamos lidando com famílias nessa situação, é claro que podem acontecer excessos e torna-se necessário chamar a polícia ou o Samu. Mas isso não acontece com tanta frequência assim”, garante. Ela diz que a casa de passagem oferece um serviço que nenhuma outra instituição quer oferecer, por causa das dificuldades encontradas. “Não recebemos qualquer um que aparece em nossa porta, e nem doamos alimentos ou dinheiro. Recebemos famílias que passaram por triagem cuidadosa, que foram selecionadas e apenas querem uma nova vida. Integrá-las a uma comunidade é a melhor forma de fazer isso”, completa.
A do Guará é a primeira das quatro casas de passagem do Distrito com atendimento para toda a família. As de Taguatinga e Planaltina são voltadas exclusivamente ao público masculino. “Por conta dos laços sentimentais, da proteção e da convivência, muitas famílias optavam em seguir nas ruas a serem separadas”, explica a ex-secretária de Desenvolvimento Social, Mayara Noronha Rocha, que contratou a instalação da casa de passagem da QE 15. “Repensamos essa questão e chegamos à conclusão que seria necessário um espaço específico para preservar e viabilizar que essa família continue junta. Estamos falando de mulheres, crianças e homens que já sofreram tanta coisa na vida e que, atualmente, precisam de um teto fraterno e seguro para que possam alcançar a autonomia em suas vidas”, diz ela.
A Casa de Passagem é mantida pela Secretaria de Desenvolvimento Social através de parceria com o Instituto Tocar. A instituição, fundada e presidida por Regina Almeida, existe há 20 anos e tem experiência em acolher pessoas que estejam em situação de rua. “Sou mãe de quatro filhos e em alguns momentos da minha vida passei por muita dificuldade e precisei ser amparada. Essa casa serve para acolher famílias que precisam urgentemente de um lar”, explica Regina.