Em dezembro de 2022, a Justiça do Distrito Federal acolheu uma ação impetrada por moradores do Conjunto “Q” da QE 15 do Guará II e suspendeu o funcionamento de uma casa de passagem destinada a atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade, instalada no final da rua. A alegação dos moradores é que o funcionamento de uma atividade comercial ou institucional em área residencial teria que ter a anuência dos vizinhos, conforme rege a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) do DF, o que não foi feito. Segundo eles, a casa de passagem havia sido instalada no início de janeiro de 2020, quando parte dos moradores estava em férias, o que poderia ter sido uma estratégia para driblar a resistência dos vizinhos. Mas, em dezembro de 2022, a autorização foi cancelada e a casa de passagem teve que ser fechada.
Entretanto, dois anos depois surge outro imbróglio semelhante ao da QE 15, por coincidência também na virada do ano. Moradores do Conjunto “E” da QI 4, no Guará I, protestam contra a instalação de uma casa de passagem, que a Secretaria de Desenvolvimento Social do GDF chama de “casa-lar”, destinada a adolescentes em situação de vulnerabilidade, numa das casas da rua. E, da mesma forma que na QE 15, os vizinhos não foram consultados.
Eles alegam que foram surpreendidos com abertura do abrigo no dia 5 de janeiro e reclamam dos transtornos que tem sofrido desde quando cerca de 15 jovens – a quantidade pode variar, porque a permanência é temporária – passaram a ocupar a casa. “Acabou o nosso sossego. O que era uma rua tranquila, habitada na maioria por pioneiros do Guará, que não conseguem mais circular sem serem importunados, além do barulho que fazem a qualquer hora, com brigas, som alto e consumo de drogas”, afirma Andreia Peixoto, vizinha de parede da casa de passagem. “São frequentes as discussões com xingamentos e palavrões”, completa.
Os moradores da rua reclamam também do entra-e-sai de viaturas da polícia e de ambulâncias, chamadas pela direção da casa para separar brigas ou atender emergências. “Nossos pais não conseguem mais circular pela rua como faziam antes. Eles tinham um instrutor contratado para a prática de atividades físicas em conjunto, mas já dispensaram porque ficou inviável”, afirma a moradora Sônia Braz. “Agora estamos sitiados em casa. Eu gostava de sair para comprar frutas e verduras nas proximidades, mas não saio mais por causa da abordagem deles pedindo dinheiro”, completa Brasília Macedo de Freitas, 84 anos, pioneira da quadra.
Outra moradora, Andrea de Freitas, conta que há alguns dias chegou uma camionete Fiorino com duas crianças de cerca de um ano de idade e as deixou na casa. Logo depois, a coordenadora do abrigo passou a pedir roupas e agasalhos aos vizinhos para elas. “É até um gesto nobre dela, mas isso não pode ser frequente aqui”, reclama Andrea. A moradora Luiza Ramos conta que os moradores já presenciaram adolescentes tomando cerveja em quiosque da praça da QI 6 e depois saindo com acompanhantes. “Elas vem em casa, se arrumam e depois retornam ao bar e de lá saem de carro”. O pior, segundo Luiza, é que isso tem acontecido com a anuência da responsável pela casa.
Reclamação formalizada
“É bom ficar claro que não somos contra esses abrigos, que tem a finalidade de abrigar e ajudar na ressocialização de pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas, pela peculiaridade da rua, que é estreita e ocupada por moradores de idade mais avançada na sua maioria, aqui não seria o local indicado. Além disso, não discutiram conosco, como diz a lei. Se não estivesse provocando tantos transtornos, não seríamos contra”, garante Andrea de Freitas.
Os moradores do conjunto encaminharam um abaixo-assinado à Secretaria de Desenvolvimento Social solicitando a retirada da casa-lar pelos motivos alegados e aguardam uma posição, mas estão dispostos a recorrer à justiça caso não sejam atendidos. “Como já há uma jurisprudência no cancelamento da autorização da casa da QE 15, acreditamos que a Justiça também irá nos atender”, espera o morador Estévão Calixto.
A reportagem do Jornal do Guará tentou ouvir a diretoria da Casa de Ismael, autorizada pela Secretaria de Desenvolvimento para instalar e gerenciar o abrigo, mas não obteve retorno. Um dos coordenadores pediu para encaminhar a solicitação de informações à assessoria de imprensa da instituição, que, por sua vez, ficou de retornar, mas não o fez. Questionamos também a Secretaria de Desenvolvimento Social sobre o fato dos vizinhos não terem sido consultados, que respondeu, por nota, “que trata-se de uma instituição de acolhimento institucional na modalidade casa-lar, que acolhe 10 crianças e adolescentes em medida protetiva, que têm direito à convívio comunitário, conforme determina o Judiciário.
O aluguel da residência no Guará I e administração do espaço é realizada pela Casa de Ismael, Organização da Sociedade Civil (OSC), parceira da Sedes no acolhimento institucional. No caso, o GDF destina recurso para garantir a oferta desse importante serviço para proteção de crianças e adolescentes vítimas de violação de direitos ou situações de violência.
Não se trata de casa de passagem. A Pasta destaca que está sempre aberta ao diálogo, pois entende imprescindível que a relação com a comunidade se estabeleça da melhor forma possível, alcançando o objetivo comum, que é a melhor convivência em sociedade”.
Justiça fechou casa semelhante na QE 15 há dois anos
Após dois anos de tramitação do processo em que moradores do Conjunto “Q” da QE 15 reclamavam de transtornos provocados por uma casa de passagem instalado na rua, o Tribunal de Justiça do DF determinou o fechamento da instituição. Em dezembro de 2022, a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios negou recurso do Instituto Tocar e da Secretaria de Desenvolvimento Social e confirmou o fechamento. Com a decisão, as atividades do instituto tiveram que ser encerradas imediatamente.
A ação tinha sido movida por seis moradores do Conjunto “Q”, que se sentiram prejudicados pela instalação da casa de passagem para atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade, principalmente moradores de rua, sob a alegação de que os vizinhos não teriam sido consultados, como prevê a legislação, e que o movimento de saída e entrada de pessoas em horários inadequados e de viaturas de órgãos de segurança e de saúde teria alterado a rotina de toda a quadra, trazendo insegurança aos moradores, além de desvalorizar os imóveis próximos.
Na argumentação à Justiça, os moradores alegaram que a instalação do abrigo em área residencial feria a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei 1.0007/2022), que não permite a instalação de qualquer atividade não residencial sem a anuência dos vizinhos em quadras residenciais.
Desde quando o abrigo foi instalado, em abril de 2020, os moradores do Conjunto iniciaram um movimento para retirá-lo da quadra, inicialmente através de tentativas de negociação com o governo e depois através da Justiça. Eles reclamavam que a rotina da rua e da quadra tinha sido alterada com o movimento de pessoas circulando e pedindo ajuda, e com barulho de viaturas da polícia, da saúde e do Corpo de Bombeiros, para o atendimento de ocorrências.
Ferindo a LUOS
Mas o principal argumento deles era que a localização da casa para esse tipo de atividade fereia a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) da cidade, e que, portanto, não poderia ter sido autorizada sem a anuência da Administração Regional do Guará, a quem cabe a concessão do alvará de funcionamento de qualquer atividade não residencial, após consulta aos vizinhos. O imóvel está localizado num endereço chamado RO 1, “onde é obrigatório o uso residencial, na categoria habitação unifamiliar, sendo facultado, simultaneamente, o uso não residencial com atividade econômica realizada no âmbito doméstico, não sendo autorizado o acesso independente”. Esse tipo de atividades, segundo eles, caberia em um endereço classificado como RO 2, “que localiza-se ao longo de vias de conexão entre conjuntos e quadras, onde é obrigatório o uso residencial, na categoria habitação unifamiliar, sendo facultado, simultaneamente, o uso não residencial exclusivamente no pavimento diretamente aberto para logradouro público e independente da habitação”, segundo a Luos.
Instituto reclamou de “intolerância” dos moradores
Para a psicóloga e presidente do Instituto Tocar, responsável pela administração da casa de passagem, Regina Almeida, “a intolerância dos vizinhos não se justificava. Estávamos prestando um serviço que ninguém quer oferecer à sociedade, ao acolher pessoas em situação de vulnerabilidade. Como estamos lidando com famílias nessa situação, é claro que podem acontecer excessos e torna-se necessário chamar a polícia ou o Samu. Mas isso não acontece com tanta frequência assim”, garante. Ela diz que a casa de passagem oferecia um serviço que nenhuma outra instituição quer oferecer, por causa das dificuldades encontradas. “Não recebemos qualquer um que aparece em nossa porta, e nem doamos alimentos ou dinheiro. Recebemos famílias que passaram por triagem cuidadosa, que foram selecionadas e apenas querem uma nova vida. Integrá-las a uma comunidade é a melhor forma de fazer isso”, completa.
A do Guará era a primeira das quatro casas de passagem do Distrito com atendimento para toda a família. As de Taguatinga e Planaltina são voltadas exclusivamente ao público masculino. “Por conta dos laços sentimentais, da proteção e da convivência, muitas famílias optavam em seguir nas ruas a serem separadas”, explica a ex-secretária de Desenvolvimento Social, Mayara Noronha Rocha, que contratou a instalação da casa de passagem da QE 15. “Repensamos essa questão e chegamos à conclusão que seria necessário um espaço específico para preservar e viabilizar que essa família continue junta. Estamos falando de mulheres, crianças e homens que já sofreram tanta coisa na vida e que, atualmente, precisam de um teto fraterno e seguro para que possam alcançar a autonomia em suas vidas”, diz ela.