por Rafael Souza
Gradualmente, várias casas do Guará, em especial as localizadas nas esquinas e em frente a ruas movimentadas e praças, vão dando lugar a prédios de quitinetes e pequenos apartamentos, disfarçados de escritórios para driblar a legislação. O que se via mais no Polo de Moda/QE 40, transformado no paraíso das quitinetes, e Setor de Oficinas, está se espalhando por toda a cidade.
O que favoreceu muito este movimento imobiliário foram as mudanças na Lei de Uso e Ocupação do Solo, a Luos (Lei Complementar nº 1.007, de 28 de abril de 2022). É ela que determina o que pode ser construído, o tamanho de cada construção e o uso que se pode fazer do lote. A Luos transformou centenas de lotes residenciais unifamiliares do Guará em lotes mistos.
Nas quadras do Guará II, por exemplo, todos os lotes de esquina, voltados para a rua central de cada quadra, agora podem receber comércios. O mesmo aconteceu com ruas voltadas a grande avenidas e lotes em torno das praças. Podendo receber comércios, é permitido que sejam construídos prédios de escritórios e lojas no térreo. Esse é justamente o problema. Os proprietários e investidores desses lotes dão entrada na Central de Aprovação de Projetos, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), de uma obra para um prédio com lojas e pequenos escritórios, que são, na verdade, transformados em quitinetes e comercializados quando prontos como residências. Mas, na fase de aprovação da obra, não há o que os técnicos do governo possam fazer e acabam obrigados a validar os projetos, amparados justamente pela Luos e outros códigos urbanísticos. Aprovado como construção comercial, o novo prédio rapidamente toma corpo e receberá em pouco tempo até 20 famílias, no lote antes destinado a uma família só. Como não é a Administração Regional que autoriza ou fiscaliza as obras, muito pouco pode ser feito com as reclamações que chegam na sua ouvidoria.
Fenômeno histórico
Esse fenômeno, entretanto, não é recente, embora esteja sendo ampliado nos últimos anos. Desde o início da cidade, havia a necessidade de se acomodar cada vez mais gente nos lotes. A luta por moradia permeia a própria história do Guará. A cidade foi fundada para dar moradia aos trabalhadores da Novacap e posteriormente a vários órgãos do Governo Federal e do governo local. O Setor de Oficinas e o Polo de Moda foram construídos após intensas cobranças da população e empresários por áreas comercias, e cada nova quadra da cidade, primeiro a QE 38 (hoje já chegamos à quadra 60) é resultado da enorme demanda por moradia no Guará. A localização privilegiada e a ampla oferta de serviços públicos são os principais atrativos da região.
O adensamento populacional também começou nos primeiros anos da cidade, com a construção das primeiras casas de fundo. As famílias iam crescendo e era preciso acomodar mais gente no mesmo lote, e já naquela época era difícil comprar novos lotes ou apartamentos. Depois, os pequenos prédios comerciais em meio às quadras cresceram verticalmente, com as quitinetes. Todos os comércios do Guará hoje têm residências nos andares superiores. Com a construção do Polo de Moda e a demora do governo em construir a infraestrutura do setor, o que afastou a maioria das empresas, toda a quadra foi ocupada por prédios de quitinetes.
Problemas
E é justamente essa mudança de destinação das quadras que causam boa parte dos problemas da cidade. Gestão do lixo, trânsito, falta de estacionamento, insegurança, problemas de abastecimento de água e energia elétrica… tudo isso é agravado por conta da grande concentração de pessoas em locais que não foram pensados para isso.
Com o desenvolvimento natural da cidade, os imóveis do Guará nunca pararam de valorizar. Um lote aqui não custa menos que R$500 mil. Apartamentos ainda na planta são oferecidos por mais de R$ 1 milhão, o que acaba afastando da cidade quem precisa de moradias populares.
Segundo a corretora de imóveis especializado no Guará, Rose Soares, há uma demanda enorme na cidade por apartamentos de 1 quarto. “Poucos prédios do Guará I e Guará II oferecem apartamentos pequenos escriturados, e a procura é grande, principalmente por jovens e idosos, mesmo com haver uma oferta grande de apartamentos sem escritura”. Os apartamentos sem a documentação individualizada, caso do Polo de Moda e dos prédios comerciais, não podem ser financiados, a posse não pode ser transferida definitivamente e não possuem o “Habite-se”, documento que garante a segurança e habitabilidade da construção. “É muito arriscado investir o dinheiro de uma vida em um imóvel sem escritura”, alerta a corretora.
Segregação econômica
Esse fenômeno chama-se gentrificação, que é o processo de segregação socioespacial vivenciado em áreas urbanas, caracterizado pela valorização acentuada de determinada área, que culmina na saída de moradores antigos em razão do aumento local do custo de vida. Essa valorização urbana gera uma outra, de atração novos moradores para a região, no geral com maior poder aquisitivo, e, em contrapartida, a “expulsão econômica” de moradores antigos, que não conseguem acompanhar o aumento do custo de vida.
Não é incomum que centros históricos ou bairros periféricos de cidades grandes sejam revitalizados, gerando uma grande valorização dos seus imóveis e expulsando os moradores originais. Mas, a gentrificação no Guará é decorrente de um processo natural. Não aconteceu uma ação de revitalização mesmo porque a cidade nunca chegou a ser desvalorizada. O que ocorreu é que o desenvolvimento natural da região, o bom planejamento urbano, a proximidade com o Plano Piloto, as áreas verdes e a excelente qualidade de vida se tornaram cada vez mais óbvias. Soma-se ainda a escassez (e o encarecimento) de bons imóveis em bairros mais nobres do Distrito Federal.
Mas, como fica a população originária do Guará? Os filhos e netos de quem chegou aqui logo no começo? O crescimento natural de uma cidade é justamente a acomodação de novas gerações. Agora, os jovens que começam uma família, que entraram agora no mercado de trabalho, os trabalhadores das empresas do Guará e os idosos que já não precisa de morar em grandes casas vão morar onde? Não há oferta de moradias mais populares no Guará. Mesmo os pequenos apartamentos são vendidos ou alugados pelo preço do Plano Piloto.
É preciso ofertar moradias mais baratas no Guará, mesmo contrariando o que o mercado imobiliário prega. É preciso que os trabalhadores morem próximos de onde prestam serviço. Este era o objetivo do arquiteto Lúcio Costa quando planejou as quadras econômicas, no Guará I, que acabaram por levar seu nome. Este também foi o motivo que levou a Novacap a planejar o Guará ainda nos anos 60. Se não for revertido esse êxodo, os impactos na economia, na qualidade de vida e na infraestrutura da cidade serão inevitáveis. Mas, muito pouco é feito para reverter o quadro. As residências irregulares no Polo de Moda serão inevitavelmente regularizadas, assim como todas as quitinetes sobre comércios em algum momento. Nenhum governo derrubará esses prédios, mesmo flagrantemente irregulares. Construídas sem planejamento adequado, apenas prolongam os problemas da cidade.
Conforme a Política Habitacional do Distrito Federal (lei nº 3.877, de 26 de junho de 2006), o governo tem a obrigação de ofertar 40% dos lotes de novos assentamentos urbanos para diminuir o déficit imobiliário, seja mediante cooperativas habitacionais, seja pela lista da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, ou por programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida. Isso já aconteceu nas novas quadras (QEs 48 a 58) e acontecerá na nova quadra 60, que será inteiramente vertical. Ainda assim, a política de distribuição e gestão dessas novas residências é insuficiente para suprir a demanda por moradia na cidade.
Novas gerações
Os mais jovens também tem muita dificuldade de estabelecerem-se no Guará justamente pela hipervalorização dos imóveis. Entre os membros da Geração Z (nascidos na segunda metade dos anos 90), que buscam imóveis para alugar, a principal motivação é a proximidade do local de trabalho, representando 40% das preferências. Mesmo com a relevância do trabalho remoto atualmente, ainda há benefícios em estar próximo ao escritório, segundo a economista Larissa Gonçalves, do DataZAP+. Uma das vantagens dessa proximidade é a oportunidade de estabelecer conexões. “São pessoas no início da carreira profissional e o networking pode ser fundamental nessa jornada”, afirma Larissa.
Assim como em outras faixas etárias, a segurança do imóvel é uma preocupação significativa para a Geração Z. Esse fator é considerado o mais relevante na decisão de compra (93%) ou aluguel (95%) para esse grupo. Em seguida, destacam-se a oferta de transporte público, a proximidade de comércios e a proximidade do local de trabalho.
Além disso, tanto os compradores (42%) quanto os locatários (62%) priorizam apartamentos padrão. Em segundo lugar no ranking estão as casas de rua, fora de condomínios. Segundo Larissa, os imóveis com tamanho entre 46m² e 60m² são os mais procurados pelo público locatário da Geração Z, devido aos valores mais acessíveis. Justamente os imóveis que não são mais encontrados no Guará, ofertados legalmente, a não ser nas quitinetes sobre prédios comerciais.