Sete anos após a aprovação e quatro anos após a sua regulamentação, a lei que proíbe a circulação de carroças e veículos de tração animal nas ruas do Distrito Federal ainda não foi executada, em parte pela falta de vontade política do governo e em outra parte por falta de solução do que fazer com os carroceiros. No fundo, entretanto, uma coisa tem a ver com a outra. Como a execução sumária da lei iria provocar uma comoção em defesa dos carroceiros, mesmo com boa parte da população concordando com a retirada dos animais do serviço, o governo prefere empurrar a solução pela barriga ou trata o assunto propositalmente de forma lenta para ver até onde vai dar.
Nem mesmo a Justiça tem feito sua parte na defesa da lei. Em outubro do ano passado, portanto há um ano, a Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Distrito Federal determinou o cumprimento da Lei 5.756/2016, sob pena de aplicação de multa de R$ 10 mil a R$ 10 milhões ao GDF e responsabilidade civil e penal a seus dirigentes que não tomarem as providências para o cumprimento da proibição de uso dos animais.
A decisão da Justiça incluia o recolhimento e alocação dos animais apreendidos aos santuários, ou seja, que deveriam ser levados para locais onde não sofreriam maus tratos e não submetidos a trabalhos forçados. E determinou ao governo que promovesse o desenvolvimento de políticas públicas para formação e qualificação dos trabalhadores interessados, ou seja, os carroceiros que quisessem se qualificar para buscar outras atividades no mercado de trabalho. Não se tem conhecimento da aplicação de qualquer sanção ao governo pelo não cumprimento da determinação.
Grupo de trabalho para propor soluções
Em resposta na época à determinação da Justiça, a Procuradoria-Geral do Distrito Federal (PGDF) informava que “o Governo do Distrito Federal tem trabalhado na proteção dos animais, e que a fiscalização do cumprimento da lei é feita por vários órgãos do GDF, incluindo o Detran, que participou de algumas ações na Asa Norte e em Planaltina”. A PGDF destacou que as ações têm caráter educativo, para informar aos carroceiros sobre a proibição da circulação, antes de envolver o recolhimento dos veículos. “A coibição e fiscalização de maus-tratos a animais compete ao Brasília Ambiental (Ibram). Até o momento, três foram recolhidos para o curral de Apreensão da Secretaria da Agricultura (Seagri)”, completa a nota da Procuradoria-Geral e acrescenta que “a qualificação dos condutores de veículos de tração animal (VTAs) compete à Secretaria do Trabalho (Setrab)”.
Mas não se pode dizer que o governo não esteja tomando providências para executar a lei, embora não da forma que os órgãos de defesa dos animais – e boa parte da população – gostariam. Em abril deste ano, foi criado um grupo de trabalho interinstitucional com o objetivo de formular políticas públicas para inserção socioeconômica dos carroceiros e viabilizar a substituição das carroças por tuk-tuks – triciclos elétricos usados na coleta de resíduos de construção civil (RCC).
De acordo com a Portaria Conjunta Nº 1, publicada no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) em 24 de abril deste ano, a equipe teria o prazo de 60 dias para entregar propostas. A medida seguia o Decreto 40.336, de 23 de dezembro de 2019, que regulamenta a Lei nº 5.756, sobre a proibição da circulação de veículos de tração animal em vias do DF.
O grupo seria coordenado pelo Serviço de Limpeza Urbana (SLU) e composto pelas secretarias de Governo (Segov), de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda (Sedet), de Educação (SEE), de Relações Institucionais (Serins), de Desenvolvimento Social (Sedes), de Meio Ambiente e Proteção Animal (Sema) e da Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (Seagri), além do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran).
Mas, passados os 60 dias, ou melhor, cinco meses da criação da comissão, não se sabe o que foi decidido. Pelo menos não foi divulgado o que o governo resolveu fazer para começar a cumprir a lei, a não ser a implantação do serviço de recolhimento de entulho por equipamentos elétricos, os chamados tuk-tuks, que começou pelo Guará há quase dois anos e com resultados animadores, porém ainda longe do objetivo de retirar os animais das ruas.
O governo anuncia que o projeto piloto dos tuk-tuks do Guará, em parceria com as cooperativas de catadores de recicláveis, deve ser estendido para todo o Distrito Federal, mas não se tem conhecimento que o serviço tenha sido implantado em outras regiões nesse período. Nem mesmo no Guará os tuk-tuks provocaram a redução da quantidade de carroças circulando pela cidade, pelo menos aparentemente.
Ampliar o serviço de tuk-tuk
Segundo o presidente do SLU, Silvio Vieira, o grupo de trabalho estuda formas de expandir para o restante do DF o projeto que deu certo no Guará. “Estamos tomando medidas precisam para efetivamente substituir as carroças pelos tuk-tuks”, afirma. “Hoje em dia, os carroceiros recolhem os resíduos em residências e descartam em áreas públicas, muitas vezes trazendo prejuízo para o meio ambiente e gerando custos altos ao SLU, que precisa recolher esses resíduos”, explica o gestor. “Com o projeto, podemos profissionalizar o carroceiro para que seja um agente ambiental, evitando o sofrimento animal e fazendo com que os materiais sejam levados para o local apropriado, que são os papa-entulhos.”
O grupo de trabalho também deveria propor formas de inserir os carroceiros no ambiente de trabalho e educacional, além de capacitá-los para a condução dos tuk tuks. “É mais uma política pública que está sendo estruturada para substituir as carroças por veículos elétricos, movidos a energia limpa, e que vai envolver as cooperativas de reciclagem e o RenovaDF; é uma iniciativa abrangente, que integra várias políticas e órgãos do governo”, avalia a secretária-executiva de Acompanhamento e Monitoramento de Políticas Públicas da Secretaria de Governo (Segov), Meire Mota.
No âmbito educacional, a chefe da Unidade de Gestão Articuladora da Educação Básica da Segov, Franciscleide Ferreira, afirma que o foco será inserir os carroceiros na Educação para Jovens e Adultos (EJA). Na prática, porém, a ideia não está dando certo. Como a região do Guará é uma das de maior demanda do uso de carroças no DF, o governo solicitou à Secretaria de Educação que implantasse turmas de alfabetização para preparação dos carroceiros para o serviço mecanizado, mas o curso oferecido pelo Centro de Ensino Fundamental 10, na QE 46, à noite, não conseguiu atrair nem dez alunos, num universo de cerca de 70 carroceiros que trabalham na cidade.
Já a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda (Sedet) ficou com a responsabilidade de qualificar e oportunizar emprego e renda para os condutores. Entre as ações estão o recadastramento, inserção nos programas de qualificação da pasta e ofertas de crédito para os trabalhadores. O subsecretário de Gestão das Águas e Resíduos Sólidos, Glauco Amorim, afirma que as propostas serão vantajosas aos condutores, do ponto de vista social e econômico, mas também para a sociedade, com a redução do impacto no meio ambiente. “Os veículos elétricos utilizam energia limpa e renovável, evitando o sofrimento animal”, explica.
Na teoria, tudo muito bonito, cheio de boas intenções. Na prática, porém, pelo menos por enquanto, muito pouco foi feito para a implantação da lei, mesmo sete anos depois de sua aprovação.